São Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 2007

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Mudanças prometidas no Réveillon só acontecem após Carnaval

Para muitos brasileiros, novo ano só começa depois da passagem da festa de fevereiro, e eles adiam procura de emprego e incorporação de novos hábitos

ROBERTO DE OLIVEIRA
DA REVISTA DA FOLHA

2006 já é passado, as oferendas se perderam no mar e a lista de promessas ficou arquivada no limbo da memória. Mas isso não significa que o ano novo começou: 2007 está aí, sim, mas ainda não é para valer.
Para o senso comum, o calendário brasileiro se divide em aC e dC -antes e depois do Carnaval-, e a frase "Depois do Carnaval, a gente conversa" funciona como senha nacional de que o ano civil começa, de verdade, a partir de março.
Em qualquer lugar do mundo, o verão costuma ser a estação mais aguardada e é sinônimo de redução na atividade econômica, porque as condições ambientais são adversas ao trabalho, como bem sabem os morenos tropicanos.
No hemisfério Sul a leseira imposta pela temperatura se soma à dupla Natal + Ano Novo. Para coroar, o Carnaval aparece como a cereja do bolo, esticando mais um pouco o limite das férias e dando um ar de grand finale na temporada. Enquanto ele não passa, até a esfera pessoal fica em suspenso.
"Ginástica, dieta, estudo, novos hábitos de saúde. O pacote todo acabou sendo transferido para a Quaresma", brinca a atriz Tina Kara, 25, que fez a musa funkeira Carina, da novela "Cobras & Lagartos" (Globo).
O tal pacote inclui adiar até a vida sentimental. "Estou há um ano e meio solteira. Sabe quando baixa aquela carência de arranjar um namorado?" Ela conta que a dela apareceu às vésperas do Natal, mas foi atropelada pela tradição do ano retardado.
"Fui visitar minha família no interior, aí veio o Réveillon, as férias de verão, e eu fui adiando, adiando, adiando", conta.
Deve ficar para março, já que Tina se programou para assistir aos desfiles das escolas de samba do Rio, destino que está mais para samba-exaltação que para bolero romântico. "Começar a conhecer alguém no meio da Sapucaí não dá, né?"
Não mesmo, concorda o modelo Ricardo Tortorelli, 24, para quem o período pré-Carnaval é tempo de empurrar o coração com a barriga. "Profissionalmente, trabalho muito em janeiro, por causa da São Paulo Fashion Week. Mas agora estou de férias na faculdade, é verão, todo mundo quer ir para a praia e, para completar, tem Carnaval", diz ele.
"Ninguém quer arrumar nada sério antes ou durante a festa. Estamos no Brasil, país do Carnaval, e o compromisso costuma ficar para depois."

Sem máscaras
Guardar-se para a gandaia faz sentido, a julgar pela avaliação do antropólogo Roberto DaMatta, 70, professor da PUC-Rio.
"O Carnaval apresenta um postulado que contraria todo o conjunto de dimensões das festas modernas." Tanto lá fora como aqui, ele compara, as festas marcam datas de importância religiosa, social e histórica: a liberdade dos negros, a vitória na guerra, o nascimento de Jesus Cristo ou Maomé.
"Já o Carnaval é a única que, a rigor, não comemora nada. Celebra o espírito, a bebida, o corpo. É uma reação ao mundo burguês", afirma.
Sua colega Lucia Helena Rangel, da PUC-SP, segue a mesma linha. "O Carnaval é uma resposta bem brasileira, uma forma de desacelerar o ritmo imposto pelo sistema econômico. Esse interregno é uma necessidade humana e altamente contagiante", afirma. Ou seja, mesmo quem não cai na festa reduz a velocidade.
Ela diz que, em geral, todas as culturas, dos índios aos europeus, mantêm ciclos rituais que envolvem menor ou maior tempo e são caracterizados por três fatores: a quebra da rotina, o recolhimento e o êxtase.
Para Lucia Helena, o hábito de o país funcionar só após o Carnaval foi construído ao longo do século 20, principalmente na segunda metade. DaMatta discorda; acha que ele foi mais forte no século 19, pré-midiático, quando os rituais tradicionais, como a Missa do Galo e o Carnaval, eram praticamente obrigatórios.
Os índices econômicos parecem dar razão ao antropólogo. Nos últimos 15 anos, o estado letárgico vem diminuindo nos principais segmentos, forçado pela globalização e a estabilidade econômica.
"Uma década atrás, a sazonalidade no Brasil era mais pronunciada do que hoje. Havia um nível menor de exigência", explica Eduardo Giannetti da Fonseca, economista, cientista social e professor do Ibmec-SP. "Hoje, a economia brasileira está mais integrada à do resto do mundo e tem que atender às demandas externas, que estão num momento contrário."
Externas ou internas, as demandas acabam gerando uma simbiose entre dois brasis, um que reduz a marcha da quinta para a segunda e outro que acelera ao máximo nos dois meses de suposta dormência.
O primeiro é afetado pelos níveis mais baixos da atividade econômica, quando parte significativa das empresas entra em férias e acaba refletindo nas vendas do comércio.
Mas, se a indústria deixa de trabalhar, outros setores se movimentam. É o período mais significativo de vendas de pacotes turísticos, a ocupação dos hotéis em pólos turísticos atinge o limite máximo, o setor de material escolar dispara, o consumo de bebidas (cerveja e refrigerante) e sorvete é o maior do ano.
Janeiro e fevereiro concentram as maiores taxas de desemprego do ano (9,2% e 19,1%, respectivamente em 2006) nas seis principais regiões metropolitanas do país: São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife e Salvador, segundo o IBGE.
Esse cenário acaba fazendo com que muita gente postergue a procura de emprego. Desempregado desde julho do ano passado, o estudante de comunicação e multimeios Filipe Vedolin, 21, conta que tentou mandar currículo para algumas empresas nos dois primeiros meses do ano, mas deu de cara com a porta fechada.
"Quando você consegue encontrar alguém, as pessoas responsáveis pela seleção não estão selecionando nada neste período ou estão viajando", diz.
Filipe preferiu guardar o dinheiro que gastaria nas andanças atrás de um trabalho em São Paulo para passar o Carnaval em São Tomé das Letra, em Minas.
Dados econômicos à parte, DaMatta acha que não há globalização capaz de fazer o samba-enredo da tal brasilidade atravessar.
"Mesmo que as atividades econômicas estejam subindo, reduzindo as taxas de aceleração, esse ciclo ritual que antecede o Carnaval não vai acabar. Não só porque é um apêndice, mas também porque ele ajuda a construir uma determinada faceta da identidade brasileira.


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