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Mudanças prometidas no Réveillon só acontecem após Carnaval
Para muitos brasileiros, novo ano só começa depois da passagem da festa de fevereiro, e eles adiam procura de emprego e incorporação de novos hábitos
ROBERTO DE OLIVEIRA
DA REVISTA DA FOLHA
2006 já é passado, as oferendas se perderam no mar e a lista
de promessas ficou arquivada
no limbo da memória. Mas isso
não significa que o ano novo começou: 2007 está aí, sim, mas
ainda não é para valer.
Para o senso comum, o calendário brasileiro se divide em aC
e dC -antes e depois do Carnaval-, e a frase "Depois do Carnaval, a gente conversa" funciona como senha nacional de
que o ano civil começa, de verdade, a partir de março.
Em qualquer lugar do mundo, o verão costuma ser a estação mais aguardada e é sinônimo de redução na atividade
econômica, porque as condições ambientais são adversas
ao trabalho, como bem sabem
os morenos tropicanos.
No hemisfério Sul a leseira
imposta pela temperatura se
soma à dupla Natal + Ano Novo.
Para coroar, o Carnaval aparece como a cereja do bolo, esticando mais um pouco o limite
das férias e dando um ar de
grand finale na temporada. Enquanto ele não passa, até a esfera pessoal fica em suspenso.
"Ginástica, dieta, estudo, novos hábitos de saúde. O pacote
todo acabou sendo transferido
para a Quaresma", brinca a
atriz Tina Kara, 25, que fez a
musa funkeira Carina, da novela "Cobras & Lagartos" (Globo).
O tal pacote inclui adiar até a
vida sentimental. "Estou há um
ano e meio solteira. Sabe quando baixa aquela carência de arranjar um namorado?" Ela
conta que a dela apareceu às
vésperas do Natal, mas foi atropelada pela tradição do ano retardado.
"Fui visitar minha família no
interior, aí veio o Réveillon, as
férias de verão, e eu fui adiando,
adiando, adiando", conta.
Deve ficar para março, já que
Tina se programou para assistir
aos desfiles das escolas de samba do Rio, destino que está mais
para samba-exaltação que para
bolero romântico. "Começar a
conhecer alguém no meio da
Sapucaí não dá, né?"
Não mesmo, concorda o modelo Ricardo Tortorelli, 24, para quem o período pré-Carnaval é tempo de empurrar o coração com a barriga. "Profissionalmente, trabalho muito em
janeiro, por causa da São Paulo
Fashion Week. Mas agora estou de férias na faculdade, é verão, todo mundo quer ir para a
praia e, para completar, tem
Carnaval", diz ele.
"Ninguém quer arrumar nada sério antes ou durante a festa. Estamos no Brasil, país do
Carnaval, e o compromisso
costuma ficar para depois."
Sem máscaras
Guardar-se para a gandaia
faz sentido, a julgar pela avaliação do antropólogo Roberto
DaMatta, 70, professor da
PUC-Rio.
"O Carnaval apresenta um
postulado que contraria todo o
conjunto de dimensões das festas modernas." Tanto lá fora
como aqui, ele compara, as festas marcam datas de importância religiosa, social e histórica: a
liberdade dos negros, a vitória
na guerra, o nascimento de Jesus Cristo ou Maomé.
"Já o Carnaval é a única que,
a rigor, não comemora nada.
Celebra o espírito, a bebida, o
corpo. É uma reação ao mundo
burguês", afirma.
Sua colega Lucia Helena
Rangel, da PUC-SP, segue a
mesma linha. "O Carnaval é
uma resposta bem brasileira,
uma forma de desacelerar o ritmo imposto pelo sistema econômico. Esse interregno é uma
necessidade humana e altamente contagiante", afirma. Ou
seja, mesmo quem não cai na
festa reduz a velocidade.
Ela diz que, em geral, todas as
culturas, dos índios aos europeus, mantêm ciclos rituais que
envolvem menor ou maior
tempo e são caracterizados por
três fatores: a quebra da rotina,
o recolhimento e o êxtase.
Para Lucia Helena, o hábito
de o país funcionar só após o
Carnaval foi construído ao longo do século 20, principalmente na segunda metade. DaMatta
discorda; acha que ele foi mais
forte no século 19, pré-midiático, quando os rituais tradicionais, como a Missa do Galo e o
Carnaval, eram praticamente
obrigatórios.
Os índices econômicos parecem dar razão ao antropólogo.
Nos últimos 15 anos, o estado
letárgico vem diminuindo nos
principais segmentos, forçado
pela globalização e a estabilidade econômica.
"Uma década atrás, a sazonalidade no Brasil era mais pronunciada do que hoje. Havia
um nível menor de exigência",
explica Eduardo Giannetti da
Fonseca, economista, cientista
social e professor do Ibmec-SP.
"Hoje, a economia brasileira
está mais integrada à do resto
do mundo e tem que atender às
demandas externas, que estão
num momento contrário."
Externas ou internas, as demandas acabam gerando uma
simbiose entre dois brasis, um
que reduz a marcha da quinta
para a segunda e outro que acelera ao máximo nos dois meses
de suposta dormência.
O primeiro é afetado pelos
níveis mais baixos da atividade
econômica, quando parte significativa das empresas entra em
férias e acaba refletindo nas
vendas do comércio.
Mas, se a indústria deixa de
trabalhar, outros setores se
movimentam. É o período mais
significativo de vendas de pacotes turísticos, a ocupação dos
hotéis em pólos turísticos atinge o limite máximo, o setor de
material escolar dispara, o consumo de bebidas (cerveja e refrigerante) e sorvete é o maior
do ano.
Janeiro e fevereiro concentram as maiores taxas de desemprego do ano (9,2% e 19,1%,
respectivamente em 2006) nas
seis principais regiões metropolitanas do país: São Paulo,
Rio, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife e Salvador, segundo
o IBGE.
Esse cenário acaba fazendo
com que muita gente postergue
a procura de emprego. Desempregado desde julho do ano
passado, o estudante de comunicação e multimeios Filipe Vedolin, 21, conta que tentou
mandar currículo para algumas
empresas nos dois primeiros
meses do ano, mas deu de cara
com a porta fechada.
"Quando você consegue encontrar alguém, as pessoas responsáveis pela seleção não estão selecionando nada neste
período ou estão viajando", diz.
Filipe preferiu guardar o dinheiro que gastaria nas andanças atrás de um trabalho em
São Paulo para passar o Carnaval em São Tomé das Letra, em
Minas.
Dados econômicos à parte,
DaMatta acha que não há globalização capaz de fazer o samba-enredo da tal brasilidade
atravessar.
"Mesmo que as atividades
econômicas estejam subindo,
reduzindo as taxas de aceleração, esse ciclo ritual que antecede o Carnaval não vai acabar.
Não só porque é um apêndice,
mas também porque ele ajuda a
construir uma determinada faceta da identidade brasileira.
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