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URBANIDADE
Memória por um fio
GILBERTO DIMENSTEIN
COLUNISTA DA FOLHA
Quando tinha quatro
anos de idade, Drauzio
Varella perdeu a mãe; pouco
tempo depois, ficou sem a avó. A
morte povoava um cenário de
seis décadas atrás -o bairro do
Brás, habitado pelos imigrantes
italianos e espanhóis, onde famílias viviam não raro amontoadas em ambientes insalubres.
Desde menino decidido a ser
médico, Drauzio viveu rodeado
de cenas fúnebres, além da perda
da mãe e da avó. Eram comuns
na paisagem caixões em que homens e crianças eram carregados. "A penicilina só começou a
se disseminar depois da Segunda
Guerra Mundial", lembra. Levaria ainda muito tempo até que se
espalhasse a vacinação para prevenir doenças da infância.
As ruas eram uma extensão
dos quartos da garotada. "Vivíamos nas ruas até porque as casas
eram pequenas." Não eram só
espaço de brincadeiras. "Havia
freqüentes guerras de gangues.
Italianos do sul odiavam italianos do norte, e ambos não gostavam dos espanhóis."
Ao escrever "Por um Fio", livro
lançado nesta semana, em que
conta a relação que, como médico, compartilhou com pacientes
terminais, Drauzio fez uma volta, embora não a tenha explicitado, às perdas da infância. Mas
as enfermidades das pessoas
"por um fio" que povoavam o
Brás e impressionaram o futuro
médico são menos importantes
em sua formação do que a determinação de um imigrante espanhol -no caso, o seu pai. É a
melhor lembrança de vida que
tem do Brás. Seu pai não parava
de repetir que todos os seus filhos
deveriam fazer uma faculdade.
"Os jovens, muitos ainda adolescentes, logo iam trabalhar nas
fábricas."
O filho de imigrante espanhol
ficou longe do trabalho e, glória
suprema do pai, entrou na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Virou o primeiro grande médico comunicador brasileiro, um exemplo de
uma profissão ainda pouco conhecida: a educação pela comunicação. Apesar da notoriedade,
não perdeu uma mania do menino do Brás: continua a andar
a pé pelas ruas. "É quase como se
fosse uma brincadeira."
Assim como as ruas do Brás
deixaram o adulto, Varella começou a lidar com a idéia, tão
forte em seus pacientes e comum
quando já passamos dos 60 anos,
de ir aos poucos se despedindo
da vida e ficando por um fio.
E-mail - gdimen@uol.com.br
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