São Paulo, segunda-feira, 12 de janeiro de 2004

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MOACYR SCLIAR

Amor & raquetes

China proíbe namoro entre atletas. A rigorosa disciplina chinesa nos treinamentos causou um baque na seleção de tênis de mesa que vai à Olimpíada de Atenas. Quatro atletas perderam suas vagas no grupo. Motivo: envolvimento amoroso com colegas. "Este é um ano olímpico e nós vamos enfrentar muitos desafios. Não podemos tolerar nada que possa prejudicar o time", disse o coordenador da equipe.
Folha Online, 6.jan.2004

Quando os jovens namorados souberam da expulsão de seus colegas de seleção, ficaram consternados e apavorados. Por enquanto, o namoro entre ambos era secreto, desconhecido até mesmo dos amigos mais íntimos. Mas, e se o coordenador da equipe descobrisse? Homem implacável, firme na sua crença de que o sexo representava um desperdício da energia necessária para a prática esportiva, dele não poderiam esperar qualquer tipo de simpatia.
Decidiram, de imediato, que o tratamento entre ambos seria agora distante, convencional. Nada de manifestações de carinho. Nada de ternas palavrinhas. Nada de suspiros.
Mas, ao mesmo tempo, sentiam que precisavam de uma forma de comunicação, algo que lhes permitisse reafirmar constantemente que sim, que se amavam, que não poderiam viver um sem o outro. Como fazê-lo? Como transmitir as mensagens da paixão? Por escrito? Perigoso: no momento em que trocassem bilhetinhos, poderiam ser descobertos, e o coordenador teria a prova material necessária para eliminá-los. Pelo olhar, talvez? Também não seria uma coisa isenta de riscos. Se se fitassem de maneira intensa, prolongada, despertariam suspeitas. Não. Bilhetes não, olhar não. Precisavam de uma outra forma de comunicação que passasse despercebida.
E aí a moça teve uma idéia. Havia algo que estava constantemente com eles e que, por causa disso, não chamaria a atenção: a raquete. Seria o instrumento que usariam para a comunicação, da mesma maneira que, no passado, os marinheiros dos navios recorriam a bandeiras para sinalização. Em apenas uma noite criaram uma espécie de léxico da raquete. Raquete junto ao coração: te amo, meu amor por ti é cada vez maior. Raquete junto à cabeça: jamais te esqueço. E assim por diante.
O único temor deles é que o coordenador, em algum treinamento, os coloque como adversários, um em cada extremo da mesa. Nesse momento, as raquetes já não poderão sinalizar a paixão; voltarão à sua finalidade original: instrumentos de um renhido combate (esportivo, mas combate) golpearão a bolinha com habilidade -e com fúria. Mas já combinaram: vença quem vencer, ambos colocarão as raquetes sobre o coração. Esperam assim que o amor sobreviva à disputa. Afinal, a disputa é transitória, mas o amor, segundo numerosos poetas, é eterno.


Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.


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