São Paulo, segunda-feira, 12 de julho de 2004

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MOACYR SCLIAR

Cenários improváveis


1. O planeta Clodovaldo

Funerária leva cinzas de mortos ao espaço. Os brasileiros que quiserem garantir a ascensão aos céus após a morte dispõem de um serviço inédito no país: uma funerária de São Caetano do Sul fez parceria com uma empresa norte-americana para lançar em foguetes parte das cinzas de seus clientes cremados. Cotidiano, 4.jul.2004

Alguns pensam em vencer a barreira da morte congelando seus cadáveres com a esperança de que, no futuro, a ciência descubra a cura para a doença que os vitimou. O projeto de Clodovaldo é diferente. Ele não se opõe a morrer e não pretende ser congelado, pretende ser cremado. Mas quer que suas cinzas sejam levadas ao espaço sideral por um foguete. Na visão de Clodovaldo, essas cinzas ficarão pairando no cosmos por muito tempo. E então uma pequena partícula, escapando à órbita terrestre, passará a gravitar em torno ao Sol como um minúsculo planeta. Milhões de anos depois acontecerá nessa partícula o mesmo que aconteceu na Terra: uma enigmática reação química provocará o surgimento de vida. Formas microscópicas, de início, que irão evoluindo, dando origem a novas espécies: dinossaurinhos, mamutezinhos, tigrinhos com dentes-de-sabre; e, finalmente, uma miniatura de hominídeo. Que evoluirá sem cessar, até que um dia nascerá, de sua estirpe, um diminuto Clodovaldo. Que crescerá, feliz, tornar-se-á um adulto, depois um velho, e finalmente morrerá, porque mesmo em diminutos planetas os humanos morrem. Mas isso não será problema: um foguetinho levará suas cinzinhas para fora da atmosferinha do planetinha e, o processo todo sendo repetido, mais um Clodovaldo verá a brilhante luz do Sol.

2. A epidemia de autenticidade

Jair Ferreira, 21, pediu para ser reprovado na terceira série do ensino médio por não se sentir preparado para passar de ano. Cotidiano, 5.jul.2004

A atitude do estudante surpreendeu muita gente. Poucas vezes se tinha visto uma tal demonstração de honestidade. A comoção foi tal que surgiu um movimento espontâneo de busca da autenticidade, algo nunca visto no país. Cenas insólitas sucediam-se: um político assomou à tribuna para dizer que, ao longo de sua vida pública, não tinha feito senão promessas mentirosas:
- Quero confessar a meus eleitores que meu único interesse era eleger-me. Eu queria conseguir cargos para meus amigos, eu queria armar um esquema de corrupção que me deixasse rico. Consegui esse objetivo, mas agora estou renunciando a ele. Vou deixar a política e entrar em um mosteiro. Terminarei meus dias orando e jejuando.
Um empresário, em carta a um importante jornal:
- Durante anos vendi um produto dietético que prejudicava as pessoas e até câncer causava. Eu sabia disso, mas tratei de ocultar a informação e até contratei uma grande empresa de publicidade para dizer exatamente o contrário: que meu produto era bom para a saúde. Agora estou acabando com minha empresa e vou me dedicar a trabalhos comunitários.
Um especulador financeiro, na TV:
- Ganhei muita grana espalhando boatos sobre o mercado acionário. Mas não quero mais esse dinheiro. Vou doá-lo aos pobres e fundar uma ONG contra a influência dos mercados.
O político, o empresário e o especulador eram amigos, e sócios, de um grande magnata. Que, diferente dos três, não se arrependeu. Pelo contrário, o raciocínio dele foi outro: eu deveria, pensou, ter falado com o professor do tal estudante e conseguir que ele fosse aprovado. Honestidade demais prejudica os negócios.


Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.


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