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MOACYR SCLIAR
Cenários improváveis
1. O planeta Clodovaldo
Funerária leva cinzas de mortos ao
espaço. Os brasileiros que quiserem
garantir a ascensão aos céus após a
morte dispõem de um serviço inédito
no país: uma funerária de São Caetano do Sul fez parceria com uma
empresa norte-americana para lançar em foguetes parte das cinzas de
seus clientes cremados. Cotidiano,
4.jul.2004
Alguns pensam em vencer a
barreira da morte congelando seus cadáveres com a esperança de que, no futuro, a ciência
descubra a cura para a doença
que os vitimou. O projeto de Clodovaldo é diferente. Ele não se
opõe a morrer e não pretende ser
congelado, pretende ser cremado.
Mas quer que suas cinzas sejam
levadas ao espaço sideral por um
foguete.
Na visão de Clodovaldo, essas
cinzas ficarão pairando no cosmos por muito tempo. E então
uma pequena partícula, escapando à órbita terrestre, passará a
gravitar em torno ao Sol como
um minúsculo planeta. Milhões
de anos depois acontecerá nessa
partícula o mesmo que aconteceu
na Terra: uma enigmática reação
química provocará o surgimento
de vida. Formas microscópicas, de
início, que irão evoluindo, dando
origem a novas espécies: dinossaurinhos, mamutezinhos, tigrinhos com dentes-de-sabre; e, finalmente, uma miniatura de hominídeo. Que evoluirá sem cessar,
até que um dia nascerá, de sua estirpe, um diminuto Clodovaldo.
Que crescerá, feliz, tornar-se-á
um adulto, depois um velho, e finalmente morrerá, porque mesmo em diminutos planetas os humanos morrem. Mas isso não será
problema: um foguetinho levará
suas cinzinhas para fora da atmosferinha do planetinha e, o
processo todo sendo repetido,
mais um Clodovaldo verá a brilhante luz do Sol.
2. A epidemia de autenticidade
Jair Ferreira, 21, pediu para ser reprovado na terceira série do ensino
médio por não se sentir preparado
para passar de ano. Cotidiano,
5.jul.2004
A atitude do estudante surpreendeu muita gente. Poucas vezes se tinha visto uma tal
demonstração de honestidade. A
comoção foi tal que surgiu um
movimento espontâneo de busca
da autenticidade, algo nunca visto no país. Cenas insólitas sucediam-se: um político assomou à
tribuna para dizer que, ao longo
de sua vida pública, não tinha feito senão promessas mentirosas:
- Quero confessar a meus eleitores que meu único interesse era
eleger-me. Eu queria conseguir
cargos para meus amigos, eu queria armar um esquema de corrupção que me deixasse rico. Consegui esse objetivo, mas agora estou renunciando a ele. Vou deixar a política e entrar em um
mosteiro. Terminarei meus dias
orando e jejuando.
Um empresário, em carta a um
importante jornal:
- Durante anos vendi um produto dietético que prejudicava as
pessoas e até câncer causava. Eu
sabia disso, mas tratei de ocultar
a informação e até contratei uma
grande empresa de publicidade
para dizer exatamente o contrário: que meu produto era bom para a saúde. Agora estou acabando
com minha empresa e vou me dedicar a trabalhos comunitários.
Um especulador financeiro, na
TV:
- Ganhei muita grana espalhando boatos sobre o mercado
acionário. Mas não quero mais
esse dinheiro. Vou doá-lo aos pobres e fundar uma ONG contra a
influência dos mercados.
O político, o empresário e o especulador eram amigos, e sócios,
de um grande magnata. Que, diferente dos três, não se arrependeu. Pelo contrário, o raciocínio
dele foi outro: eu deveria, pensou,
ter falado com o professor do tal
estudante e conseguir que ele fosse aprovado. Honestidade demais
prejudica os negócios.
Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às
segundas-feiras, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.
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