São Paulo, sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

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BARBARA GANCIA

Emmanuel Goldstein voltou


Em "1984", Goldstein é uma criação do Partido, um inimigo comum que serve para canalizar a insatisfação


VAI COMEÇAR tudo de novo. A Europa não digere bem o diferente, não gosta nem mesmo dos seus. Na Itália, e também na Suíça, cidades separadas por coisa de 40, 50 quilômetros falam dialetos ou línguas completamente diferentes e, muitas vezes, se odeiam.
Na Inglaterra, ainda predomina um sistema de castas. Literalmente até ontem, os filhos da nobreza não precisavam ser eleitos para fazer parte do Parlamento. Para obter uma cadeira na Câmara dos Lordes, bastava que eles se dessem ao trabalho de nascer. As diferenças sociais entre uma casta e outra começam pela maneira de falar. Cada colégio tradicional tem seu próprio sotaque e qualquer inglês sabe reconhecer o ex-aluno de Eton pela maneira como ele fala.
Da mesma forma, a tradição diz que quem nasce na área em que os sinos da igreja St. Mary-le-Bow podem ser ouvidos irá falar cockney, o sotaque predominante entre a classe trabalhadora. Já imaginou ser definido social e culturalmente por toda a sua vida pela maneira como você fala? Na semana passada, os italianos aprovaram uma lei permitindo que os médicos da rede pública de saúde exerçam com naturalidade o ódio aos estrangeiros. De agora em diante, eles podem denunciar quem vive ilegalmente no país assim que o imigrante ilegal pisar no consultório buscando atendimento médico.
Lembra, nobre leitor, quando tudo indicava que o prazo de validade de "1984", de Orwell, havia expirado? Com Fukuyama, nós não chegamos a achar que a luta de ideologias e de classes e tudo o que delas emanava havia chegado ao fim? Pois a atual crise econômica é como um bafo rançoso no cangote. Com ela, a intolerância e a xenofobia que estavam dormentes na Europa acordaram. E de mau humor. Em "1984", Emmanuel Goldstein é uma criação do Partido, um inimigo comum que serve para canalizar o descontentamento da população. Ele é uma espécie de Guerra das Malvinas, que foi confeccionada pelos generais argentinos para distrair a população de suas reais aflições. Parece incrível que, a esta altura, Emmanuel Goldstein possa ter ressuscitado na Europa. Mas ele voltou na pele de um africano, um sul-americano ou um árabe, sem permissão de residência, que ameaça o emprego do europeu. E está prestes a ser linchado em praça pública.
Na noite da última segunda-feira, em Zurique, na Suíça, a advogada pernambucana Paula Oliveira, de 26 anos, teve a infelicidade de ser confundida com Emmanuel Goldstein por supostos skinheads. Paula foi espancada e cortada a estiletadas. Grávida de gêmeas, ela sofreu aborto na noite da agressão e acabou internada em estado grave. Depois de vê-la no hospital, seu pai disse: "Paula recebeu uma centena de ferimentos e teve o corpo todo retalhado; sempre achamos que essas coisas só acontecem no cinema...".
Apesar da pouca idade durante a Segunda Guerra, minha mãe colaborou com os "partigiani" levando e trazendo encomendas em uma cesta de piquenique. E viu um primo adolescente ser morto a sangue frio pelos nazistas. Assistimos juntas à queda do Muro de Berlim pela TV. Ela não parecia muito animada. Perguntei o que havia e ela disse: "Vai começar tudo de novo". Minha mãe pode ter errado o timing, mas nunca se engana sobre o fundamental. Está começando tudo de novo.

barbara@uol.com.br
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