São Paulo, segunda-feira, 13 de julho de 2009

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MOACYR SCLIAR

Os mortos, os vivos e os muito vivos


Uma questão delicada eram os comícios em cemitérios, coisa que poderia ferir o sentimento dos sensíveis


 


Comissão que audita contas paralelas do Senado tem até morto. Único instrumento de fiscalização das contas bancárias mantidas em sigilo no Senado, a comissão interna formada por um senador e dez servidores é uma peça de ficção. O grupo é integrado por funcionários que não mais pertencem aos quadros do Senado e até por um servidor morto em 2005. Brasil, 6 de julho de 2009.
"Os vivos serão sempre e cada vez mais governados pelos mortos." Auguste Comte (1798-1857) "Os vivos serão sempre e cada vez mais governados pelos mais vivos." Barão de Itararé (Aparício Torelly, 1895-1971)

A NOTÍCIA segundo a qual um servidor já falecido fazia parte de uma comissão de fiscalização provocou surpresa e até revolta. Não entre todos, porém. De imediato formou-se um grupo de pessoas para quem aquilo que parecia uma falha era, na verdade, um desígnio do destino, indicando claramente o caminho que o país deveria seguir: entregar toda a administração pública, e não apenas eventuais comissões, a falecidos. O novo regime teria até um nome: seria a mortocracia.
Mortocracia, isso os adeptos do movimento apressaram-se em deixar claro, não excluiria a democracia. Ao contrário: os mesmos critérios de escolha de representantes da população seriam utilizados, a começar pelo voto livre, secreto e universal. Partidos políticos poderiam apresentar seus candidatos, e fazer campanhas por eles. O financiamento das campanhas seguiria a regra básica da transparência; funerárias, por exemplo, estariam automaticamente excluídas, dado seu óbvio interesse no assunto.
Qualquer cidadão falecido poderia ser apresentado como candidato, mediante a comprovação, pelos cabos eleitorais, do óbito, através de competente atestado. Uma questão delicada era a realização de comícios em cemitérios, coisa que poderia ferir o sentimento de pessoas sensíveis. Depois de muita discussão o grupo resolveu aceitar essa possibilidade. Sim, comícios poderiam ser realizados em cemitérios, desde que adotadas certas precauções. Showmícios, nem falar. Discursos, também não. No máximo, reuniões em silêncio e distribuição de material impresso.
Uma vez eleitos os defuntos, para cargos no Executivo e no Legislativo, como funcionaria a administração? A velha ideia de que mortos não falam não poderia aplicar-se ao caso; ainda que o silêncio seja de ouro, o grupo não esquecia a sábia e antiga máxima: é conversando que as pessoas se entendem. Parafraseando Camões, os eleitos seriam contatados no assento etéreo onde havia subido para, de lá, fazerem seus pronunciamentos, emitirem seus votos, e darem seu parecer sobre o uso de verbas públicas.
Ah, sim, e os assentos etéreos seriam em número igual ao de cadeiras na câmara alta, na câmara baixa e em outras instâncias do poder. Os adeptos da mortocracia sabem que a ideia está muito adiante de seu tempo. Mas não se preocupam com isso. Como Lord Keynes, afirmam que a longo prazo todos estaremos mortos. E, mortos, seremos todos candidatos potenciais. O que só confirma a validade dessa nova forma de democracia.

MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha



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