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São Paulo, segunda-feira, 13 de outubro de 2003

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MOACYR SCLIAR

Troféu e sonho

Endividados, clubes penhoram até taça. A crise financeira por que passa o futebol brasileiro leva os principais clubes do país a ter parte dos bens penhorada. O Flamengo disponibilizou troféus ganhos nos últimos anos para diversos credores.
Folha Esporte, 5.out.03


A mansão, ainda que luxuosa, é de um mau gosto extremo. Não há muito o que ver, mas o dono faz questão de levar os visitantes a uma sala que chama de "meu templo"; ali, em uma espécie de vitrine, iluminada por fortes lâmpadas, está um troféu, uma taça destas que os clubes ganham em campeonatos. E, sem que lhe peçam, ele conta a história dessa taça.
Tudo começou quando era um rapaz pobre, morando em uma pequena cidade do interior. Lugar modorrento, onde nada acontecia. Assim, foi grande a surpresa quando se anunciou a chegada, ali, de um grande time de futebol: nada menos que o Flamengo, do Rio de Janeiro. Notícia que o deixou excitadíssimo porque, em primeiro lugar, era fã de futebol -jogava razoavelmente bem- e, mais importante, era um ardoroso torcedor do rubro-negro. Que viria ali para disputar um torneio regional, no qual participavam o time da cidade e mais alguns outros clubes de localidades vizinhas.
Na véspera do grande jogo, nem conseguiu dormir, tão ansioso estava. No dia seguinte, foi o primeiro a chegar ao pequeno e precário estádio. Aos poucos as arquibancadas foram se enchendo. Todos miravam-no com irritação. Explicável: ele vestia uma camisa do Flamengo e agitava uma bandeira do clube: decidira assumir a sua condição de torcedor e o fazia com orgulho. Aplaudiu com entusiasmo o rubro-negro, quando este entrou em campo.
A partida começou e logo duas coisas ficaram claras; primeiro, que os donos da casa não eram adversários para o Flamengo; segundo, que o time carioca estava com muito azar. Jogador após jogador se lesionava e tinha de ser substituído. Lá pelas tantas, o insólito; mais um lesionado -e já não havia reservas no banco. O que gerou um impasse. A partida foi paralisada, enquanto juiz e dirigentes deliberavam.
- Foi aí -conta ele- que eu tive uma inspiração. Levantei-me e, da arquibancada, gritei que jogaria pelo Flamengo. Os dirigentes olharam-me com espanto, mas decidiram aceitar a proposta. Rapidamente assinei um contrato e no instante seguinte estava no campo. Num instante, apossei-me da bola, driblei um, driblei o segundo, chutei forte no canto esquerdo -gol! Gol da vitória! O Flamengo ganhou a taça. Que os dirigentes, em sinal de gratidão, me ofereceram.
Esta é a história que o homem conta. Na qual ninguém acredita: todos sabem que comprou a taça, por bom dinheiro, de um credor do Flamengo. Mas também ninguém o desmente. Afinal, quem compra um troféu compra junto o sonho que esse troféu representa.


Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.


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