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MOACYR SCLIAR
Troféu e sonho
Endividados, clubes penhoram até
taça. A crise financeira por que passa
o futebol brasileiro leva os principais
clubes do país a ter parte dos bens penhorada. O Flamengo disponibilizou
troféus ganhos nos últimos anos para
diversos credores.
Folha Esporte, 5.out.03
A mansão, ainda que luxuosa, é de um mau gosto
extremo. Não há muito o que ver,
mas o dono faz questão de levar
os visitantes a uma sala que chama de "meu templo"; ali, em uma
espécie de vitrine, iluminada por
fortes lâmpadas, está um troféu,
uma taça destas que os clubes ganham em campeonatos. E, sem
que lhe peçam, ele conta a história dessa taça.
Tudo começou quando era um
rapaz pobre, morando em uma
pequena cidade do interior. Lugar modorrento, onde nada acontecia. Assim, foi grande a surpresa
quando se anunciou a chegada,
ali, de um grande time de futebol:
nada menos que o Flamengo, do
Rio de Janeiro. Notícia que o deixou excitadíssimo porque, em
primeiro lugar, era fã de futebol
-jogava razoavelmente bem-
e, mais importante, era um ardoroso torcedor do rubro-negro.
Que viria ali para disputar um
torneio regional, no qual participavam o time da cidade e mais
alguns outros clubes de localidades vizinhas.
Na véspera do grande jogo, nem
conseguiu dormir, tão ansioso estava. No dia seguinte, foi o primeiro a chegar ao pequeno e precário estádio. Aos poucos as arquibancadas foram se enchendo.
Todos miravam-no com irritação. Explicável: ele vestia uma camisa do Flamengo e agitava uma
bandeira do clube: decidira assumir a sua condição de torcedor e o
fazia com orgulho. Aplaudiu com
entusiasmo o rubro-negro, quando este entrou em campo.
A partida começou e logo duas
coisas ficaram claras; primeiro,
que os donos da casa não eram
adversários para o Flamengo; segundo, que o time carioca estava
com muito azar. Jogador após jogador se lesionava e tinha de ser
substituído. Lá pelas tantas, o insólito; mais um lesionado -e já
não havia reservas no banco. O
que gerou um impasse. A partida
foi paralisada, enquanto juiz e dirigentes deliberavam.
- Foi aí -conta ele- que eu tive uma inspiração. Levantei-me
e, da arquibancada, gritei que jogaria pelo Flamengo. Os dirigentes olharam-me com espanto,
mas decidiram aceitar a proposta. Rapidamente assinei um contrato e no instante seguinte estava no campo. Num instante,
apossei-me da bola, driblei um,
driblei o segundo, chutei forte no
canto esquerdo -gol! Gol da vitória! O Flamengo ganhou a taça.
Que os dirigentes, em sinal de gratidão, me ofereceram.
Esta é a história que o homem
conta. Na qual ninguém acredita:
todos sabem que comprou a taça,
por bom dinheiro, de um credor
do Flamengo. Mas também ninguém o desmente. Afinal, quem
compra um troféu compra junto o
sonho que esse troféu representa.
Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.
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