São Paulo, segunda-feira, 15 de março de 2004

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MOACYR SCLIAR

Cadeia vazia é um perigo

Fuga deixa cadeia vazia. Os únicos presos em regime fechado da cadeia de Fernando Noronha (PE) fugiram na madrugada de sábado para domingo. Cotidiano, 9.mar.2004

A fuga dos presos despertou, nos poucos funcionários da cadeia, certa ansiedade: o que aconteceria agora, que as celas estavam vazias, entregues às moscas? Será que alguém, nos escalões superiores, não teria a idéia de fechar o estabelecimento penal, transferindo os servidores para algum outro lugar? Possibilidade preocupante, que os levou a discutir o assunto durante horas, em busca de uma proposta de solução. Um deles sugeriu até o aproveitamento da prisão para finalidades turísticas, o que proporcionaria aos visitantes da ilha uma experiência inusitada: passe algumas horas enjaulado e depois desfrute a vertigem da liberdade. Proposta tão boa que resolveram submetê-la às autoridades. Não chegaram a fazê-lo, por causa de um fato inesperado.
Na manhã seguinte, quando chegaram à cadeia, encontraram-na ocupada. Cerca de 12 pessoas estavam lá, dois homens, três mulheres, alguns adolescentes, várias crianças. Tinham se trancafiado nas celas. O diretor da cadeia, espantado, perguntou o que estavam fazendo ali.
- Nós não temos casa para morar -respondeu um dos homens. - Soubemos que a cadeia está vazia e resolvemos ocupá-la. Tipo Movimento dos Sem-Teto, conhece?
O diretor conhecia e até achava justas as reivindicações de pessoas que vivem ao relento, mas ponderou que cadeia não era o melhor lugar para uma ocupação.
- Cadeia é para criminoso, para bandido. Gente que representa ameaça para a sociedade. Não é o caso de vocês, é?
Não, não era, e o líder do grupo teve de admiti-lo. Todos ali eram pessoas pacíficas, sem nenhum problema com a lei. Mas não desistiria tão facilmente:
- Se a gente fosse ameaça para a sociedade, o senhor nos deixaria aqui?
- Sim -respondeu o diretor. Vocês ficariam aqui, como prisioneiros.
- Pois então -disse o homem, triunfante- vou fazer uma ameaça ao senhor, em nome do grupo: ou o senhor nos aceita aqui, ou nós lhe cagamos a pau, e aí o senhor tem de nos prender de qualquer jeito.
O diretor deixou-os ficar. Estão se comportando muito bem; fazem sua própria comida, limpam as celas, não incomodam ninguém. O único temor deles é que os fugitivos sejam capturados e voltem à cadeia, roubando-lhes o lugar. Mas este é um risco que é preciso correr. A vida na cadeia, esteja ela cheia ou vazia, é sempre um perigo.


Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em reportagens publicadas no jornal.


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