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MOACYR SCLIAR
Cadeia vazia é um perigo
Fuga deixa cadeia vazia. Os únicos
presos em regime fechado da cadeia
de Fernando Noronha (PE) fugiram
na madrugada de sábado para domingo. Cotidiano, 9.mar.2004
A fuga dos presos despertou, nos poucos funcionários
da cadeia, certa ansiedade: o que
aconteceria agora, que as celas estavam vazias, entregues às moscas? Será que alguém, nos escalões superiores, não teria a idéia
de fechar o estabelecimento penal, transferindo os servidores para algum outro lugar? Possibilidade preocupante, que os levou a
discutir o assunto durante horas,
em busca de uma proposta de solução. Um deles sugeriu até o
aproveitamento da prisão para finalidades turísticas, o que proporcionaria aos visitantes da ilha
uma experiência inusitada: passe
algumas horas enjaulado e depois
desfrute a vertigem da liberdade.
Proposta tão boa que resolveram
submetê-la às autoridades. Não
chegaram a fazê-lo, por causa de
um fato inesperado.
Na manhã seguinte, quando
chegaram à cadeia, encontraram-na ocupada. Cerca de 12 pessoas estavam lá, dois homens, três
mulheres, alguns adolescentes,
várias crianças. Tinham se trancafiado nas celas. O diretor da cadeia, espantado, perguntou o que
estavam fazendo ali.
- Nós não temos casa para
morar -respondeu um dos homens. - Soubemos que a cadeia
está vazia e resolvemos ocupá-la.
Tipo Movimento dos Sem-Teto,
conhece?
O diretor conhecia e até achava
justas as reivindicações de
pessoas que vivem ao relento,
mas ponderou que cadeia não
era o melhor lugar para uma
ocupação.
- Cadeia é para criminoso, para
bandido. Gente que representa
ameaça para a sociedade. Não é o
caso de vocês, é?
Não, não era, e o líder do grupo
teve de admiti-lo. Todos ali eram
pessoas pacíficas, sem nenhum
problema com a lei. Mas não desistiria tão facilmente:
- Se a gente fosse ameaça para
a sociedade, o senhor nos deixaria aqui?
- Sim -respondeu o diretor.
Vocês ficariam aqui, como
prisioneiros.
- Pois então -disse o homem,
triunfante- vou fazer uma
ameaça ao senhor, em nome do
grupo: ou o senhor nos aceita
aqui, ou nós lhe cagamos a pau, e
aí o senhor tem de nos prender de
qualquer jeito.
O diretor deixou-os ficar. Estão
se comportando muito bem; fazem sua própria comida, limpam
as celas, não incomodam ninguém. O único temor deles é que
os fugitivos sejam capturados e
voltem à cadeia, roubando-lhes o
lugar. Mas este é um risco que é
preciso correr. A vida na cadeia,
esteja ela cheia ou vazia, é sempre
um perigo.
Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção
baseado em reportagens publicadas no
jornal.
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