|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MOACYR SCLIAR
O ciúme na vitrine
Cliente vira parte da vitrine em loja de SP. Cotidiano, 26 de abril de 2006
Ela tinha duas frustrações
na vida. A primeira: nunca
conseguira realizar seu sonho de
tornar-se atriz. Adorava palco,
achava que tinha vocação para
isso, mas os pais eram contra,
achavam que moça decente tinha
de casar e de cuidar da casa. Assim, ela acabara casando, e o casamento era a sua segunda frustração. O marido, um homem
boa pinta, simpático, amável, era
conhecido mulherengo. Volta e
meia viam-no em bares e restaurantes, acompanhado de mulheres lindíssimas. Com o que ela se
revoltava; pensara muitas vezes
em separação, mas a verdade é
que não saberia recomeçar a vida
sozinha. Assim, ia levando.
Foi então que leu sobre a original loja que havia transformado
a vitrine em uma espécie de palco;
ali, em confortáveis cadeiras, pessoas podiam conversar sob o
olhar curioso dos transeuntes. Entre os quais certamente estaria
seu marido; todos os dias ele passava pelo lugar, a caminho do escritório. Aliás, mencionara a loja
mais de uma vez.
O que lhe deu uma idéia. Para
pô-la em prática a primeira coisa
que fez foi telefonar para um amigo, que partilhara com ela a paixão pelo teatro e que era de fato
bom ator. Será que ele lhe ajudaria numa encenação? Claro que
sim, foi a resposta.
Poucos dias depois os dois foram à loja. Entraram, pediram licença à gerente para sentarem
nas cadeiras da vitrine. E ali ficaram. Conforme combinado, representavam o papel de namorados: mãos dadas, conversavam,
riam, trocavam carícias.
O que, obviamente, atraiu a
atenção das pessoas que passavam. Em breve uma pequena
multidão se concentrava em frente à vitrine. Era uma massagem
no ego dela, mas o espectador que
ela queria, mesmo, era o marido.
Imaginava o assombro dele ao se
ver traído em público, o escândalo que faria. Que fizesse escândalo, ela nem se abalaria. E quando
ele, depois, lhe pedisse explicações, ela responderia, com o mesmo ar enfadado que ele tantas vezes exibira e usando as mesmas
palavras: ora, seus ciúmes não
têm razão de ser, somos amigos.
O problema é que o marido não
aparecia, o que aliás era desconcertante, dada a sua habitual
pontualidade. Teria acontecido
alguma coisa? Ela já estava nervosa e nem conseguia ouvir o que
o amigo lhe dizia, quando de súbito avistou o esposo.
Sim, ele estava passando na
rua. Mas aparentemente nem notava o que estava se passando na
vitrine. E não notava por uma razão óbvia: estava muito entretido
conversando com uma bela moça, a quem enlaçava pela cintura.
E não ia para o escritório: fez sinal para um táxi, os dois entraram e sumiram.
Ela voltou para casa desolada.
E agora sabe que tem apenas
duas alternativas. Uma é o divórcio. Outra é um striptease na vitrine. Uma decisão difícil de
tomar.
Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às
segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.
Texto Anterior: Proibidão: Hinos funks exaltam a organização Próximo Texto: Consumo: Cliente diz que teve de pagar para montar bicicleta ergométrica Índice
|