São Paulo, segunda-feira, 15 de maio de 2006

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MOACYR SCLIAR

O ciúme na vitrine

 Cliente vira parte da vitrine em loja de SP. Cotidiano, 26 de abril de 2006

Ela tinha duas frustrações na vida. A primeira: nunca conseguira realizar seu sonho de tornar-se atriz. Adorava palco, achava que tinha vocação para isso, mas os pais eram contra, achavam que moça decente tinha de casar e de cuidar da casa. Assim, ela acabara casando, e o casamento era a sua segunda frustração. O marido, um homem boa pinta, simpático, amável, era conhecido mulherengo. Volta e meia viam-no em bares e restaurantes, acompanhado de mulheres lindíssimas. Com o que ela se revoltava; pensara muitas vezes em separação, mas a verdade é que não saberia recomeçar a vida sozinha. Assim, ia levando.
Foi então que leu sobre a original loja que havia transformado a vitrine em uma espécie de palco; ali, em confortáveis cadeiras, pessoas podiam conversar sob o olhar curioso dos transeuntes. Entre os quais certamente estaria seu marido; todos os dias ele passava pelo lugar, a caminho do escritório. Aliás, mencionara a loja mais de uma vez.
O que lhe deu uma idéia. Para pô-la em prática a primeira coisa que fez foi telefonar para um amigo, que partilhara com ela a paixão pelo teatro e que era de fato bom ator. Será que ele lhe ajudaria numa encenação? Claro que sim, foi a resposta.
Poucos dias depois os dois foram à loja. Entraram, pediram licença à gerente para sentarem nas cadeiras da vitrine. E ali ficaram. Conforme combinado, representavam o papel de namorados: mãos dadas, conversavam, riam, trocavam carícias.
O que, obviamente, atraiu a atenção das pessoas que passavam. Em breve uma pequena multidão se concentrava em frente à vitrine. Era uma massagem no ego dela, mas o espectador que ela queria, mesmo, era o marido. Imaginava o assombro dele ao se ver traído em público, o escândalo que faria. Que fizesse escândalo, ela nem se abalaria. E quando ele, depois, lhe pedisse explicações, ela responderia, com o mesmo ar enfadado que ele tantas vezes exibira e usando as mesmas palavras: ora, seus ciúmes não têm razão de ser, somos amigos.
O problema é que o marido não aparecia, o que aliás era desconcertante, dada a sua habitual pontualidade. Teria acontecido alguma coisa? Ela já estava nervosa e nem conseguia ouvir o que o amigo lhe dizia, quando de súbito avistou o esposo.
Sim, ele estava passando na rua. Mas aparentemente nem notava o que estava se passando na vitrine. E não notava por uma razão óbvia: estava muito entretido conversando com uma bela moça, a quem enlaçava pela cintura. E não ia para o escritório: fez sinal para um táxi, os dois entraram e sumiram.
Ela voltou para casa desolada. E agora sabe que tem apenas duas alternativas. Uma é o divórcio. Outra é um striptease na vitrine. Uma decisão difícil de tomar.


Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.


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