São Paulo, terça-feira, 15 de junho de 2010

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ANÁLISE MUDANÇA NA LEI

Legislador respondeu à demanda punitiva

Mudança quis elevar grau de proteção simbólica com a junção do crime de estupro e atentado violento ao pudor


O MUNDO ESTÁ COMEÇANDO A FICAR FARTO DAS INTERVENÇÕES ESPETACULARES DAQUELES QUE NIETZSCHE CHAMOU DE MELHORADORES DA HUMANIDADE


LUÍS FERNANDO CAMARGO DE BARROS VIDAL
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os crimes sexuais são horríveis. Causam náusea e repulsa. Nestes tempos em que a consciência republicana ignora o domínio das relações privadas e que o Estado laico se impõe face à autoridade eclesiástica, é esperada a revelação de um mundo ignorado e subestimado de violações e violências sexuais de toda ordem na esfera doméstica e no espaço religioso.
A consequência é a expectativa social por maior rigor penal. O legislador, essencialmente movido pelas ações midiáticas, não tardou em responder à demanda punitiva. Fez modificar o Código Penal para aumentar penas e elevar o grau de proteção simbólica com a junção dos antigos crimes de estupro e atentado violento ao pudor num mesmo artigo da lei chamado de estupro, e outro de estupro de vulnerável.
A mensagem é de que agora é pra valer: tudo é estupro, tudo é punido com rigor. Poucos meses depois vemos que não é bem assim. O direito é um sistema que se governa por regras próprias. O direito penal é constituído de garantias duramente conquistadas na evolução da humanidade. Disso não podemos abrir mão. Os povos que o fizeram conheceram os horrores dos regimes totalitários.

CRIME ÚNICO
As mais variadas tendências ideológicas da jurisprudência passam a afirmar que cometer o antigo estupro juntamente com o antigo atentado violento ao pudor é um único crime nos termos da lei nova, e isso deve beneficiar a todos, inclusive aqueles já condenados por força do princípio da retroatividade da lei mais benéfica.
O rigor, quando cabe, deve ocorrer na fixação da pena, que é uma só e já é elevada em seu grau mínimo: seis ou oito anos, conforme o caso. Esta interpretação é rigorosamente técnica. Mas técnicos apolíticos não existem, e é preciso identificar a mensagem política subjacente às decisões.
Haverá quem veja o mais puro laxismo. Leniência com a persistente cultura do abuso e da violência sexual. Uma jurisprudência libidinosa. É um erro. O mundo está começando a ficar inconscientemente farto das intervenções espetaculares daqueles que Nietzsche chamou de melhoradores da humanidade. E a jurisprudência dá sinais disso. Os fracassos de nosso processo civilizatório são nossos, e não do outro a quem imputamos o mal e estamos sempre dispostos a linchar, com lei ou sem lei.

LUÍS FERNANDO CAMARGO DE BARROS VIDAL é presidente da Associação Juízes para a Democracia



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