São Paulo, terça-feira, 15 de junho de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RUBEM ALVES

Cemitério de árvores


Meu pé de rosmaninho é igual a todos os demais, exceto numa coisa: meu pai que me deu a mudinha


MINHAS MEMÓRIAS estão cheias de árvores. Menino, passando férias no sobrado do meu avô, eu me levantava e saia para a praça vazia. Lá, eu me assentava embaixo de uma tipuana cheia de pássaros pretos.
Na curva do trem havia uma gigantesca paineira, velhíssima, com um buraco no tronco. Diziam que era morada de sacis. Mas nunca vi nenhum. Depois do jantar, lá pelas cinco, os homens e as crianças se ajuntavam em volta da paineira para contar casos de assombração. Terminado um caso ninguém o desmentia. A roda de casos tinha de continuar. E, para continuar, era só dizer: "Mas isso não é nada..."
E era obrigatório que todo jardim tivesse um pé de jasmim e outro de romã, de sementes mágicas para trazer riqueza se colocadas na carteira na noite de passagem de ano.
Faz muitos anos tive saudade do meu pai e escrevi sobre um arbusto que ele me deu. Começava assim:
"Tenho, no meu jardim, um pé de rosmaninho. Ele é, em tudo, igual a todos os outros pés de rosmaninho que há por este mundo. Aquele cheirinho gostoso quando a gente esbarra nas folhas; brancas, com uma gota de rosa, milhares de florinhas, quando chega o tempo; e as abelhas sem conta que se juntam e zumbem. Gosto de me deitar na rede, perto dele, quando as noites são frescas e há aquela brisa... Às vezes me descubro conversando com ele e já cheguei mesmo a agradar as suas folhas, como se ele sentisse. Nunca se sabe ao certo. É igual a todos os demais, exceto numa coisa: foi o meu pai que me deu a mudinha. Meu pai já morreu. O rosmaninho guardou o seu gesto..."
De uma árvore cujo nome não sei, uma árvore de cemitério, que faz sombra aos túmulos de Abelardo e Heloisa, roubei umas folhas e pus num quadro. Olho para as folhas e me lembro do amor dolorido dos dois.
É que existe uma crença que, chegado o fim da vida, os mortos se transformam em pássaros que precisam de árvores para pousar. Na versão original da história da Cinderela não havia Fada Madrinha. O que havia era a sua mãe morta que, para não abandoná-la, passou a viver numa árvore onde moravam os pássaros que protegiam a menina.
Vivo, inaugurei o cemitério de árvores. Plantei a minha árvore, um jequitibá. Acho que porque, no início do meu escrever sobre a educação, usei o jequitibá como metáfora do educador que, sem ter ido a qualquer escola, nasce selvagem no meio da floresta sem que ninguém plante. Arrependi-me. Achei a metáfora presunçosa, com mania de grandeza. Pudesse mudar, eu plantaria uma árvore que desse frutos, por amor aos passarinhos.
Aí me perguntei: por que plantar árvores só para os mortos? Pois Bach não compôs o coral "Alle Menschen müssen sterben", todos os homens devem morrer? Pus-me a plantar árvores para os vivos.
Duas cerejeiras japonesas para a Tomiko e o Hans. O Jether e a Lucília quiseram uma árvore de louro e outra de canela. Plantei também uma árvore para cada neta, formando um "c" com uma pracinha no meio.
Esse jardim já não é meu. Não sei qual foi o destino das árvores. Nem sei se os seus nomes continuam os mesmos. Mas, se ainda fosse meu, eu mandaria esculpir numa prancha de madeira esse curto poema de Alberto Caeiro que diz tudo o que é para ser dito:
"Ah, como os mais simples dos homens são doentes e confusos e estúpidos ao pé da clara simplicidade de existir das árvores e das plantas. Sejamos simples e calmos como os regatos e as árvores, e Deus amar-nos-á fazendo de nós belos como as árvores e os regatos, e dar-nos-á verdor na sua primavera e um rio aonde ir ter quando acabemos..."


Texto Anterior: Análise/Mudança na lei: Legislador respondeu à demanda punitiva
Próximo Texto: A cidade é sua
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.