São Paulo, quarta-feira, 15 de dezembro de 2004

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URBANIDADE

Magia da lata

GILBERTO DIMENSTEIN
COLUNISTA DA FOLHA

Demorou que Davi Ribeiro Paiva, de 14 anos, migrante alagoano, acreditasse que sairia uma fotografia daquela lata tão comum. Mas saiu. "Parecia coisa mágica."
A técnica é banal, conhecida com "pinhole". Revestida de preto e tapada com papel fotográfico, a lata recebe um pequeno furo, coberto com fita adesiva escura. Puxa-se o adesivo e pronto: entra a luz, trazendo a imagem que vai aparecer, aos poucos, quando o papel estiver mergulhado em produtos químicos para revelação. "Quase não acreditei no que via." Para Davi, foi bem mais do que a primeira foto que tirou em toda a sua vida.
Ele chegou a São Paulo faz um ano -exatamente o tempo em que não fala com o pai. "Meu pai sofre de alcoolismo, o que o deixa muito violento. Por isso minha mãe saiu de Alagoas e veio viver em São Paulo." Pelas ruas, acompanha a mãe, uma catadora de papel.
Davi quer estudar, mas não consegue. Os supletivos só aceitam alunos com idade superior a 14 anos. Como é analfabeto, não consegue se matricular numa escola pública. Para que o garoto tivesse uma ocupação (e não ficasse zanzando pelas ruas sem fazer nada), um educador ensinou-lhe a técnica do "pinhole". Levou-o a passear pela cidade para escolher as imagens. Munido da lata, o menino escolheu tirar, do alto de um prédio, a foto de uma praça.
Ao ver o resultado no papel, a primeira imagem que lhe veio à cabeça não foi a da praça, mas a de seu pai. "Gosto muito dele, ele é sangue do meu sangue." Seu pai é fotógrafo de rua em Maceió. Pensou logo em mandar a foto, acompanhada de um bilhete escrito à mão, em que falasse sobre como funciona a máquina de lata. "É para ele ver que eu aprendi a escrever." Não tem idéia do novo endereço do pai nem sabe escrever. Alfabetizar-se é seu projeto prioritário para 2005. Não vai mandar a foto da praça. Nada o impressionou tanto em sua estada na cidade como os vitrais do Mercado Municipal, atravessados pelos raios de sol. Essa foi a imagem que ele se propôs a captar e a enviar a seu pai para falar do seu encantamento por São Paulo.
Até lá, Davi já terá saído do anonimato e conseguido fazer uma exposição. É que, nesta semana, ao lado de outros meninos e meninas iniciantes em "pinhole", está mostrando suas fotos, fixadas nas paredes de um café da Vila Madalena.

E-mail - gdimen@uol.com.br


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