São Paulo, sábado, 16 de janeiro de 1999

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DATA VENIA

"Torre de Babel" e a honra

ADRIANA GRAGNANI
EVA BLAY

A década de 70 é um marco para o movimento feminista. Nela se incrementou, no plano acadêmico e social, a reflexão sobre a condição feminina, buscou-se compreender as raízes que conduziam à subordinação da mulher e, sobretudo, buscou-se desvendar que mitos e valores levavam o homem a assassinar sua companheira, ou ex-companheira, questão até o momento cheia de lacunas.
Aos assassinos, sempre homens probos, impunham-se penas brandas. À mulher assassinada, nenhuma defesa de sua dignidade. Era sempre a culpada.
De lá para cá, a sociedade continuou a presenciar esse tipo de crime. As mulheres têm acompanhado os julgamentos que, quase sempre, ao seu final, deixam a sensação de que a justiça não foi feita.
Neste perpetuar do supostamente justificado direito de assassinar a mulher, chama atenção a trajetória do personagem Clementino, na novela "Torre de Babel".
Depois de assassinar sua mulher, Clementino passa 20 anos preso. Se considerarmos que o sistema de aplicação de penas, no Brasil, é progressivo (do fechado ao aberto, de condições mais severas para menos severas, de acordo com o mérito do condenado), a pena a que foi submetido contraria a lei.
Se pensarmos, também, que o crime foi cometido nos idos da década de 70, concluiremos que a situação de Clementino não reflete o que ocorria em termos de assassinatos de mulheres e as brandas penas impostas aos seus algozes. Não nos foge à lembrança Ângela Diniz, Eliane de Gramont, entre tantas mulheres assassinadas.
Como saga da família Clementino, tenta-se repetir a cena de 20 anos. Sua filha Sandra, garçonete, moça desvairada, de personalidade semelhante à mãe assassinada, envolve-se com um jovem advogado de futuro, defensor de seu pai, extremamente ético e equilibrado (será?). De tal sorte são as peripécias da moça, que acabam por atingir a honra do profissional, que, surpreendido em sua inocência, num ataque de raiva, tenta repetir o gesto assassino, como ocorreu com seu cliente.
A conclusão diabólica e divorciada da Justiça: há 20 anos a mulher de Clementino tinha por que ser assassinada; sua filha Sandra é sua cópia escrita! As mulheres devem, por essa ótica desumana, por desígnios tramados por uma sociedade permissiva e cruel, ser marcadas. A morte violenta é didaticamente apontada.
Aqui a ficção une-se à realidade dos fatos, pelo trágico, pelo infortúnio. No Estado de São Paulo, as mulheres continuam a morrer porque são subordinadas aos maridos, companheiros, namorados, ao Estado, à ausência de mecanismos para o exercício da plena cidadania. As mulheres continuam a ser assassinadas pelos maridos, companheiros ou namorados.
O princípio da dignidade da pessoa humana não é valor ético inatingível. Já é mais do que a hora de sermos merecedores de respeito, inclusive no horário das oito.


Adriana Gragnani, socióloga e advogada, é assessora da Comissão da Mulher Advogada (OAB-SP).


Eva Blay, socióloga, é professora titular de sociologia e coordenadora do Nemge (Núcleo de Estudos e Relações Sociais de Gênero) da USP. Foi senadora pelo PSDB-SP (1992-95).



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