São Paulo, sábado, 16 de janeiro de 1999

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LETRAS JURÍDICAS

Descartes

WALTER CENEVIVA
da Equipe de Articulistas

René Descartes, o maior filósofo francês, notável pelo rigor metódico de seu pensamento, morreu em Estocolmo, em fevereiro de 1650, de modo pouco lógico. A rainha Cristina, da Suécia, o contratou para lhe dar aulas, mas Descartes não questionou o horário inicial delas. Cristina determinou que começassem às 5h. No rigoroso inverno sueco, bem diferente da temperatura mais amena de Paris, acabou pegando uma gripe, que o matou, pouco antes de completar 54 anos.
O tosco resmo biográfico de Descartes se explica. O governador de Minas Gerais, Itamar Franco, depois de decidir a moratória por 90 dias, explicou sua reação dizendo-se cartesiano. Cartesiano é o seguidor da filosofia de Descartes, cujas idéias são claras, metódicas, racionais, sólidas e, sobretudo, lógicas.
Sem mergulhar na filosofia nesta coluna jurídica, a decisão do governador mineiro não parece cartesiana, avaliada a contar da ordem constitucional vigente. Itamar tem carreira política digna de todo respeito e, assim, torna imperativo o esclarecimento da divergência.
O ponto de partida está na interpretação da Carta Magna. Para tornar mais claro o lado jurídico, sintetizo a divisão tributária constitucional entre União, Estados e municípios. Uma parte dos impostos federais fica com os Estados em que são cobrados, segundo critérios variados. Outra parte, dos impostos sobre a renda e produtos industrializados (IPI), é dividida entre os três níveis de governo, cabendo 21,5% ao Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal. Mais 10% vão para os Estados e o Distrito Federal, sobre o IPI de produtos por eles exportados.
Como regra, o dinheiro a ser repartido pertence aos Estados. Não pode ser retido pela União. É melhor, porém, que o leitor leia o art. 160 da Constituição para tirar suas próprias conclusões. Diz a cabeça desse dispositivo: "É vedada a retenção ou qualquer restrição à entrega e ao emprego dos recursos atribuídos, nesta seção, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios, neles compreendidos adicionais e acréscimos relativos a impostos". Contudo, e aí se percebe que Itamar Franco foi mal aconselhado na moratória, o parágrafo único do artigo 160 torna claro que a vedação acima reproduzida "não impede a União de condicionar a entrega de recursos ao pagamento de seus créditos". O parágrafo foi acrescentado em março de 1993, pela emenda nº 3, quando o governador era presidente da República.
No lado dos fatos, cabe notar que a luta surda entre os Estados e a União, com respeito a acertos de contas, é velha. Os Estados acabaram firmando contratos de refinanciamento de suas dívidas com o governo federal, para pagamentos em até 30 anos.
Solução que Minas Gerais também aceitou. Se Minas mantiver a moratória, a União reterá os valores que normalmente repartiria com o governo mineiro. Do ponto de vista econômico, o incidente será mais espetaculoso do que propriamente sério.
Retornemos a Descartes. Em português e em minúsculas, descartes é o plural de descarte que, no jogo de cartas, é a carta abandonada. Em sentido figurado, também significa desculpa ardilosa, evasiva. Por não ter sido lógico na leitura do parágrafo do artigo 160 e por ameaçar descumprir compromissos assumidos por Minas, Itamar Franco foi, em português, figuradamente "cartesiano". Em face da União, a moratória é inócua para os mineiros e um mal para o Brasil. Diante da negativa federal do repasse, criou "descarte" grave, pois não se trata de "um problema deles lá (de Brasília)", em frase atribuída ao governador, mas de nós todos. Do povo brasileiro.



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