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LETRAS JURÍDICAS
Descartes
WALTER CENEVIVA
da Equipe de Articulistas
René Descartes, o maior filósofo francês, notável pelo rigor metódico de seu pensamento, morreu em Estocolmo,
em fevereiro de 1650, de modo
pouco lógico. A rainha Cristina, da Suécia, o contratou para lhe dar aulas, mas Descartes não questionou o horário
inicial delas. Cristina determinou que começassem às 5h.
No rigoroso inverno sueco,
bem diferente da temperatura
mais amena de Paris, acabou
pegando uma gripe, que o
matou, pouco antes de completar 54 anos.
O tosco resmo biográfico de
Descartes se explica. O governador de Minas Gerais, Itamar Franco, depois de decidir
a moratória por 90 dias, explicou sua reação dizendo-se
cartesiano. Cartesiano é o seguidor da filosofia de Descartes, cujas idéias são claras,
metódicas, racionais, sólidas
e, sobretudo, lógicas.
Sem mergulhar na filosofia
nesta coluna jurídica, a decisão do governador mineiro
não parece cartesiana, avaliada a contar da ordem constitucional vigente. Itamar tem
carreira política digna de todo respeito e, assim, torna imperativo o esclarecimento da
divergência.
O ponto de partida está na
interpretação da Carta Magna. Para tornar mais claro o
lado jurídico, sintetizo a divisão tributária constitucional
entre União, Estados e municípios. Uma parte dos impostos federais fica com os Estados em que são cobrados, segundo critérios variados. Outra parte, dos impostos sobre a
renda e produtos industrializados (IPI), é dividida entre
os três níveis de governo, cabendo 21,5% ao Fundo de
Participação dos Estados e do
Distrito Federal. Mais 10%
vão para os Estados e o Distrito Federal, sobre o IPI de produtos por eles exportados.
Como regra, o dinheiro a ser
repartido pertence aos Estados. Não pode ser retido pela
União. É melhor, porém, que
o leitor leia o art. 160 da
Constituição para tirar suas
próprias conclusões. Diz a cabeça desse dispositivo: "É vedada a retenção ou qualquer
restrição à entrega e ao emprego dos recursos atribuídos,
nesta seção, aos Estados, ao
Distrito Federal e aos municípios, neles compreendidos
adicionais e acréscimos relativos a impostos". Contudo, e aí
se percebe que Itamar Franco
foi mal aconselhado na moratória, o parágrafo único do
artigo 160 torna claro que a
vedação acima reproduzida
"não impede a União de condicionar a entrega de recursos
ao pagamento de seus créditos". O parágrafo foi acrescentado em março de 1993, pela
emenda nº 3, quando o governador era presidente da República.
No lado dos fatos, cabe notar que a luta surda entre os
Estados e a União, com respeito a acertos de contas, é
velha. Os Estados acabaram
firmando contratos de refinanciamento de suas dívidas
com o governo federal, para
pagamentos em até 30 anos.
Solução que Minas Gerais
também aceitou. Se Minas
mantiver a moratória, a
União reterá os valores que
normalmente repartiria com
o governo mineiro. Do ponto
de vista econômico, o incidente será mais espetaculoso do
que propriamente sério.
Retornemos a Descartes. Em
português e em minúsculas,
descartes é o plural de descarte que, no jogo de cartas, é a
carta abandonada. Em sentido figurado, também significa
desculpa ardilosa, evasiva.
Por não ter sido lógico na leitura do parágrafo do artigo
160 e por ameaçar descumprir
compromissos assumidos por
Minas, Itamar Franco foi, em
português, figuradamente
"cartesiano". Em face da
União, a moratória é inócua
para os mineiros e um mal
para o Brasil. Diante da negativa federal do repasse, criou
"descarte" grave, pois não se
trata de "um problema deles
lá (de Brasília)", em frase
atribuída ao governador, mas
de nós todos. Do povo brasileiro.
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