São Paulo, sábado, 16 de fevereiro de 2008

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Reforma manterá ala para 283 doentes crônicos do Juquery

Obra custará R$ 36 milhões e pretende "humanizar" o local; tendência é que esses hospitais psiquiátricos desapareçam

Maria dos Santos Pereira, 59, está há 49 anos no Juquery; assim como outros 282 pacientes crônicos, só sairá de lá quando morta

WILLIAN VIEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL

Maria dos Santos Pereira, 59, passa o dia na beira da cama, no canto direito da enfermaria, olhando pela janela. Cercada por flores de plástico, ela monitora o Hospital Psiquiátrico do Juquery, em Franco da Rocha (Grande SP), e dá broncas nas mulheres que correm nuas aos berros. "Antes, eu botava ordem nisso tudo, no braço."
A própria Pereirão ri, entre orgulhosa e tímida, ao lembrar dos tempos em que o lugar "era o inferno, cheio de mulher fazendo xixi no chão" -sua memória guarda uma lucidez incômoda. "Antes, seis homens não me seguravam. Olha meu braço. Gordo de injeção."
Mas Pereirão não é uma personagem do passado. Há 49 anos no Juquery, é das mais antigas entre os 283 pacientes crônicos que só sairão de lá quando mortos -eles não têm para onde ir.
Explica também por que a famosa ala de crônicos, que o então governador Geraldo Alckmin prometeu desativar em 2006, não só não feche suas portas como passe, a partir desse mês, por uma reforma de R$ 36 milhões que vai remodelar todo o complexo do Juquery. Um prédio hoje caindo aos pedaços -a "primeira colônia", antes "um depósito de gente" -será reformado e receberá apenas os pacientes crônicos.
"A recomendação não é criar unidades intra-hospitalares", diz Pedro Delgado, coordenador de saúde mental do Ministério da Saúde, já que o Brasil vem passando desde 2001 por um processo de "desinstitucionalização", tirando os pacientes das enfermarias.
"Mas se for uma transição que humanize, é bem-vinda." E diz: O Juquery "chegou a um estágio em que pacientes com maior dependência são um desafio". Porque "a tendência é que esses hospitais desapareçam", diz sua diretora, Maria Teresa Freire. "Mas não se fecha um hospital assim."

Busca do tempo perdido
A reforma é a última etapa de uma cruzada pela "devolução" dos pacientes que estavam internados no Juquery -há 20 anos eram 18 mil. Sua memória e documentos foram devassados. "Eles têm memória, só não se perguntava", diz a coordenadora de psiquiatria do Juquery, Maria Alice Scardoelli.
Muitos foram internados há mais de 50 anos pelos pais -a maioria já morta. Sobram sobrinhos, enteados, padrastos. "Mas imagine uma cunhada descobrir que tem um cunhado internado no Juquery? É um tal de todo mundo desaparecer." E a lei só obriga pais e filhos a darem custódia mútua.
No Juquery estavam também deficientes físicos e idosos -que não deveriam estar em um manicômio- e que foram encaminhados para outros hospitais. Os 283 "resistiram a todos os processos".
O mesmo tem acontecido Brasil afora. Em São paulo, cerca de 500 parentes foram rastreados desde 2004, e 13% dos pacientes voltaram à família -mas no Estado há 12 mil pacientes crônicos à espera.
Como Pereirão, que pode migrar para uma das "casinhas" terapêuticas. Só que 49 anos aqui parecem pesar mais. "Não quero ficar sozinha. Daqui eu não saio."
Mesmo com as histórias de horror que marcaram o Juquery e que a lei 10.216, de 2001, proíba novas internações em instituições asilares, famílias insistem em internar seus entes com problemas psiquiátricos. "No mínimo uma vez por mês um familiar vem ao Juquery, até pela fama que tem, pensando: vou deixar ele aí", diz Scardoelli -como uma mãe que já tentou várias vezes internar um filho com depressão crônica. "Esses gostam muito de fazer um laço com o lençol no chuveiro", diz.
"Esse modelo se construiu em 200 anos", diz Delgado -seis anos, desde a nova lei, seria pouco para que haja uma mudança de mentalidade da população. O ideal, diz, é oferecer alternativas que convençam as famílias de que a substituição do modelo asilar é vantajosa. "Não pode ser a de "fique com seu paciente.'"


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