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São Paulo, domingo, 16 de março de 2003

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IMIGRAÇÃO

Risco de doenças como a tuberculose levou igreja e prefeitura a estudarem como atrair esse grupo para a rede pública

Ilegal, latino-americano vira "sem-saúde"

AURELIANO BIANCARELLI
DA REPORTAGEM LOCAL

Estima-se que eles sejam 400 mil só em São Paulo, 240 mil deles "indocumentados", nome dado àqueles que estão em situação irregular. Falam espanhol, guarani, quíchua ou aimará, línguas dos Andes bolivianos e peruanos.
Muitos vieram, em travessias "clandestinas", direto para oficinas de costuras da região central de São Paulo. Num mesmo espaço, eles comem, dormem e trabalham -às vezes 16 horas por dia.
Eles formam a comunidade latino-americana que vive em São Paulo, onde predominam os bolivianos, paraguaios, peruanos, colombianos, chilenos. Mais recentemente começaram a chegar também os argentinos.
Sem documentos, camuflados nas multidões do centro, eles evitam as instituições e serviços públicos em que precisem apresentar os "papéis" que não têm. Para serem atendidos nos serviços de saúde, dependem da boa vontade dos funcionários. E, da mesma forma como "escapam" da polícia, também "escapam" dos serviços de vigilância epidemiológica.
Trabalhando e dormindo em espaços apertados e não ventilados, comendo precariamente, eles formam o caldo de cultura para doenças como a tuberculose.
A Pastoral do Migrante estima que 20 em cada mil deles possam estar com a doença, o dobro da incidência da região central de São Paulo. O centro já tem o maior índice do país por causa da população de rua, cortiços, albergues e doentes de Aids. A incidência no Brasil é de 1,9 por mil.
Essa situação dramática e de risco para a saúde pública começou a mudar na semana passada, quando prefeitura, Pastoral do Migrante e representantes da comunidade latina se reuniram.
A intenção é criar uma forma de atraí-los para a rede pública, mesmo sem papéis, garantindo que não serão vigiados ou presos pela polícia. A política é semelhante àquela hoje adotada pelo Ministério da Saúde para encorajar os dependentes de drogas a procurarem os serviços de saúde.
No caso dos latinos, a "operação" poderá ser facilitada com a reabertura da rádio comunitária Latin Sat, fechada na última sexta-feira, e que transmitia 24 horas por dia em castelhano, guarani, aimará e quíchua. Ouvida em boa parte das oficinas de costura dos bairros centrais, seria o meio para falar com a comunidade.
"A intenção é usar a rádio como meio de passar informações de interesse para a comunidade e de assegurar que podem procurar os serviços de saúde sem riscos", diz o padre Roque Pattussi, pároco da Pastoral do Migrante.
A iniciativa é desafiadora. Enquanto a lei do SUS (o serviço público de saúde) garante atendimento a todos, sem excluir nacionalidades, os imigrantes estão ilegais, pelo menos enquanto providenciam os papéis.
O termo "indocumentado" foi adotado como politicamente correto pelas instituições de saúde e da igreja que lidam com os imigrantes. "Não se deve chamá-los de clandestinos", diz Huda Farah Siqueira Cunha, coordenadora de saúde da Subprefeitura Sé. É nessa região que se concentram os imigrantes latino-americanos, e é nela que deve começar o trabalho da prefeitura.
"A lei (do SUS) é para quem cumpre a lei, e essas pessoas entraram de forma irregular", diz Cunha. "Não poderiam estar aqui, mas, uma vez que estão, precisam ser incorporadas ao sistema de saúde. Estamos estudando um jeito de fazer isso."
O hospital ou posto costuma pedir um atestado de residência e um documento para que recebam o cartão SUS. Como a maioria trabalha de forma ilegal, costurando para os "patrões" coreanos, não possuem atestados e evitam dizer onde moram.
"É o ciclo do medo", diz a advogada Ruth Myrian Camacho Kadluba, filha de paraguaios e que há dez anos oferece assessoria jurídica na Pastoral do Migrante. "Eles temem que, uma vez doentes, com tuberculose, por exemplo, alguém da saúde vá até a oficina e constate que as instalações não são adequadas. O agente terá então que avisar o Ministério do Trabalho, que, por sua vez, informará a Polícia Federal."
Se forem pegos, arcarão com uma multa de R$ 838, mais a ajuda de advogados que a Pastoral costuma oferecer, e terão três dias para deixar o país. "A maioria desaparece na cidade e continua aqui", diz Ruth Kadluba.
Pela lei, só pode permanecer no país quem tem um visto, quem tem um filho brasileiro ou se casa com brasileiro. Para não correr riscos, a gravidez não conta com pré-natal, diz a advogada. E quando o pedido de permanência é encaminhado à Polícia Federal, a família recebe uma "visita social" dos policiais. "Todos os ilegais que moram ali acabam tendo que se mudar com medo da tal visita."
A próxima reunião entre a comunidade, a prefeitura e a pastoral acontece amanhã. "Nossa preocupação é com a saúde, não com os papéis dessas pessoas", diz Cláudio Luiz de Oliveira, que representa a Secretaria da Saúde nessas reuniões. Para a Pastoral do Migrante, o problema não existiria se a lei fosse modernizada. "É a lei que cria os ilegais."



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