São Paulo, segunda-feira, 16 de agosto de 2010

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MOACYR SCLIAR

A mulher dos meus sonhos


Estava numa praia quando de repente apareceu uma moça desconhecida e linda a sorrir-lhe; correu para ela e acordou


 


Encomende seu sonho. Uma área da neurologia argumenta que um indivíduo pode dirigir seus próprios sonhos. Uma técnica é a incubação do sonho, pesquisada pela primeira vez nos anos 1990 por Deirdre Barrett, da Harvard Medical School. Segundo a psicóloga, o paciente deve escrever seu problema em uma frase curta e colocar a anotação perto da cama.
EQUILÍBRIO, 10.AGO.2010

AINDA NÃO ENCONTREI a mulher dos meus sonhos, costumava dizer aos amigos. Não sem amargura: aos 40 anos continuava solteiro, sem nem sequer uma namorada que com ele compartilhasse o leito. Com pena dele, um amigo falou-lhe da técnica desenvolvida por uma psicóloga americana, coisa muito simples. Tão simples que ele resolveu tentar; afinal, nada tinha a perder.
Naquela mesma noite, e seguindo as instruções da psicóloga, escreveu numa folha de papel, em letra caprichada, a frase mágica: "Quero encontrar a mulher de meus sonhos". Feito o que, foi dormir.
Para sua decepção, porém, teve apenas os pesadelos habituais, acidente de carro, briga de rua, essas coisas. Acordou furioso, amaldiçoando a própria ingenuidade. Mas, à noite, resolveu tentar de novo.
Tomou um bom copo de vinho, colocou a folha de papel com a anotação na mesa de cabeceira, visualizou a questão mas não a mulher; essa continuava para ele um mistério e acabou adormecendo.
Funcionou. No sonho, estava numa praia no litoral paulista, sozinho, quando de repente aparecia, vinda de lugar misterioso, uma moça para ele desconhecida, linda, a olhá-lo sorridente. Correu para ela e, no momento que iam se abraçar, acordou. Feliz, contudo: agora tinha a resposta para seu problema.
No fim de semana, pegou o carro e foi para o litoral. O tempo estava chuvoso. Não havia quase ninguém na praia, mas mesmo assim ele ficou ali. E de repente ela apareceu: a moça do sonho. Correu até ela, apresentou-se, contou o que tinha acontecido e garantiu, emocionado: "Tenho certeza de que este encontro é obra do Destino".
Começaram a sair juntos e, seis meses depois, estavam casados. Foram morar no espaçoso apartamento dele. E aí tiveram a primeira briga: na cama, que era de casal (ele sempre nutrira a esperança de ver ali a mulher de seus sonhos), ela escolheu o lado que ficava junto à mesinha de cabeceira. Ele não gostou.
Aos 40 anos, tinha seus hábitos, e não pretendia mudá-los facilmente. Mas, considerando que encontrara a mulher de seus sonhos, optou por não fazer daquilo um cavalo de batalha.
O problema foi superado, mas outros surgiram. Ambos eram voluntariosos, ambos tinham suas manias. Brigavam constantemente e ele começou a se perguntar se a técnica da psicóloga tinha mesmo funcionado, se era aquela a mulher de seus sonhos.
Uma noite discutiram mais que o habitual e ele, irritado, disse que iria dormir no sofá da sala. Foi, mas de madrugada, arrependido (e com dor na coluna), resolveu voltar.
Silenciosamente entrou no quarto, olhou para a mulher: era linda. E então avistou, sobre a mesa de cabeceira, um papel cuidadosamente dobrado. Não precisava abri-lo para saber o que ali estava escrito: "Quero encontrar o homem dos meus sonhos".
Com um suspiro, deitou-se. E, tendo tomado um sonífero, adormeceu. Um sono bruto, pesado. Um sono sem sonhos.

às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.
moacyr.scliar@uol.com.br


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