|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MOACYR SCLIAR
A mulher dos meus sonhos
Estava numa praia quando de repente apareceu uma moça desconhecida e linda a sorrir-lhe; correu para ela e acordou
|
Encomende seu sonho. Uma área da
neurologia argumenta que um indivíduo pode dirigir seus próprios sonhos. Uma técnica é a incubação do
sonho, pesquisada pela primeira
vez nos anos 1990 por Deirdre Barrett, da Harvard Medical School. Segundo a psicóloga, o paciente deve
escrever seu problema em uma frase curta e colocar a anotação perto
da cama.
EQUILÍBRIO, 10.AGO.2010
AINDA NÃO ENCONTREI a mulher
dos meus sonhos, costumava dizer
aos amigos. Não sem amargura: aos
40 anos continuava solteiro, sem
nem sequer uma namorada que
com ele compartilhasse o leito. Com
pena dele, um amigo falou-lhe da
técnica desenvolvida por uma psicóloga americana, coisa muito simples. Tão simples que ele resolveu
tentar; afinal, nada tinha a perder.
Naquela mesma noite, e seguindo
as instruções da psicóloga, escreveu
numa folha de papel, em letra caprichada, a frase mágica: "Quero encontrar a mulher de meus sonhos".
Feito o que, foi dormir.
Para sua decepção, porém, teve
apenas os pesadelos habituais, acidente de carro, briga de rua, essas
coisas. Acordou furioso, amaldiçoando a própria ingenuidade. Mas,
à noite, resolveu tentar de novo.
Tomou um bom copo de vinho,
colocou a folha de papel com a anotação na mesa de cabeceira, visualizou a questão mas não a mulher; essa continuava para ele um mistério
e acabou adormecendo.
Funcionou. No sonho, estava numa praia no litoral paulista, sozinho, quando de repente aparecia,
vinda de lugar misterioso, uma moça para ele desconhecida, linda, a
olhá-lo sorridente. Correu para ela
e, no momento que iam se abraçar,
acordou. Feliz, contudo: agora tinha
a resposta para seu problema.
No fim de semana, pegou o carro
e foi para o litoral. O tempo estava
chuvoso. Não havia quase ninguém
na praia, mas mesmo assim ele ficou ali. E de repente ela apareceu: a
moça do sonho. Correu até ela, apresentou-se, contou o que tinha acontecido e garantiu, emocionado: "Tenho certeza de que este encontro é
obra do Destino".
Começaram a sair juntos e, seis
meses depois, estavam casados. Foram morar no espaçoso apartamento dele. E aí tiveram a primeira briga: na cama, que era de casal (ele
sempre nutrira a esperança de ver
ali a mulher de seus sonhos), ela escolheu o lado que ficava junto à mesinha de cabeceira. Ele não gostou.
Aos 40 anos, tinha seus hábitos, e
não pretendia mudá-los facilmente.
Mas, considerando que encontrara
a mulher de seus sonhos, optou por
não fazer daquilo um cavalo de batalha.
O problema foi superado, mas
outros surgiram. Ambos eram voluntariosos, ambos tinham suas
manias. Brigavam constantemente
e ele começou a se perguntar se a
técnica da psicóloga tinha mesmo
funcionado, se era aquela a mulher
de seus sonhos.
Uma noite discutiram mais que o
habitual e ele, irritado, disse que
iria dormir no sofá da sala. Foi, mas
de madrugada, arrependido (e com
dor na coluna), resolveu voltar.
Silenciosamente entrou no quarto, olhou para a mulher: era linda. E
então avistou, sobre a mesa de cabeceira, um papel cuidadosamente
dobrado. Não precisava abri-lo para saber o que ali estava escrito:
"Quero encontrar o homem dos
meus sonhos".
Com um suspiro, deitou-se. E,
tendo tomado um sonífero, adormeceu. Um sono bruto, pesado. Um sono sem sonhos.
às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.
moacyr.scliar@uol.com.br
Texto Anterior: Entidades divergem sobre como fazer a inclusão em escola Próximo Texto: A cidade é sua Índice
|