São Paulo, segunda-feira, 17 de janeiro de 2005

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MOACYR SCLIAR

Crime e castigo

1. Crime
Por custarem mais caro às instituições, universitários com título de doutorado estão sendo demitidos. Cotidiano, 10.jan.2005

O professor raramente via o reitor, de modo que ficou surpreso quando, uma manhã, chamaram-no à reitoria. Sem demora foi lá, e ali estava o reitor, um homem alto, sisudo. Fê-lo sentar e anunciou, sem rodeios:
-Recebemos uma grave denúncia contra o senhor. Fomos informados de que o senhor tem o título de doutorado. E o senhor sabe que nossa quota de doutores já foi ultrapassada, de modo que teremos de demiti-lo.
O professor protestou: não sabia do que o reitor estava falando. Seu título era de mestrado, e era como mestre que havia sido contratado.
-Neste caso -disse o reitor- como é que o senhor explica isto aqui?
Abriu uma gaveta e de lá sacou uma publicação encadernada em verde. Ao vê-la, o professor estremeceu: era sua tese de doutorado, apresentada em uma universidade distante. O segredo que ele imaginara razoavelmente preservado agora tornava-se público, graças, provavelmente, a algum desafeto. Em prantos, disse que aquilo fora o resultado de um ato impensado, tresloucado mesmo:
-Quando dei por mim estava escrevendo esta tese. Simplesmente não pude me conter. Por favor, perdoe-me. Prometo que não vou pedir gratificação de doutorado, prometo.
O reitor concordou: daria uma chance. Mas, a qualquer menção de doutorado ou de pós-doutorado, o professor estaria na rua.
Ele agradeceu, muito aliviado. Em sinal de gratidão, pensa até em renunciar ao mestrado.

2.Castigo
Prédios tremem durante shows no Guarujá. Cotidiano, 11. jan.2005

"Papai, mamãe, ontem lembrei de vocês, ao ler essa notícia sobre os shows que fazem tremer os prédios. E lembrei de vocês porque não consigo fazer tremer prédio algum. Não consigo fazer shows, não consigo tocar bateria.
Porque vocês não permitem. Vocês não querem que eu seja músico, dizem que não é uma profissão séria. Vocês querem que eu me forme numa faculdade, que tenha título de mestrado e de doutorado, que possa comprar um apartamento como o de vocês, à beira-mar. Onde eu seria, claro, infeliz para sempre, mas isso a vocês não importa.
Quero dizer a vocês que há tempos penso em me vingar e que essa notícia me deu uma grande idéia. Vou, sim, prosseguir na minha carreira musical. Vou formar um grande conjunto, um conjunto que ficará famoso e que atrairá multidões para os nossos shows na beira da praia. Nosso som fará tremer o solo, os prédios, tudo. Nosso som será um terremoto. Melhor ainda: nosso som provocará um tsunami. E quando a água do mar estiver invadindo o apartamento de vocês, vocês vão lembrar do que eu lhes disse. Portanto escolham: ondas musicais ou ondas de maremoto. Só lembrem que não tenho muito tempo para esperar pela decisão."


Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha

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