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São Paulo, segunda-feira, 17 de novembro de 2003

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MOACYR SCLIAR

A bordo dos nossos sonhos

 Solteiros a bordo: divorciados, viúvos e desacompanhados em geral procuram empresas que oferecem turismo para animar a vida social dos solteiros. Folha Equilíbrio, 13.nov.2003

Solteiro ele já era há muito tempo; na verdade, poderia facilmente ser classificado como solteirão. No passado pouco se importara com esse tipo de rótulos ("O importante é gozar a vida"); mas agora, que estava chegando à meia-idade e começava a sentir o peso dos anos, via as coisas de modo diferente. A solidão o preocupava; quem cuidará de mim quando eu ficar velho?, era uma pergunta que lhe ocorria constantemente.
Foi então que ouviu falar de um cruzeiro marítimo para solteiros, descasados e viúvos. De imediato ficou entusiasmado. Em primeiro lugar, porque nunca viajara de navio; depois, por causa da oportunidade. Poderia encontrar ali uma mulher sozinha, bonita e ah, sim, rica. Porque ele era um homem de meios modestos e, embora não pensasse em coisas tipo golpe do baú, não ficaria triste se de repente o destino lhe presenteasse com uma fortuna devidamente associada ao amor.
Foi até a agência de viagens. Havia diversos tipos de pacote para o cruzeiro, dependendo da duração e da qualidade das acomodações. Ele escolheu o mais barato; afinal, tratava-se de uma aposta e não era de arriscar muito. No dia seguinte lá estava ele. Não ficou decepcionado. O navio era imenso, e luxuoso. E muita gente participava no cruzeiro, homens e mulheres.
Mas as coisas não saíram bem como esperava. Tão logo o navio partiu ele caiu de cama. O médico de bordo disse que não era nada sério, uma simples gripe, mas recomendou que repousasse. Assim, enquanto os outros se divertiam na piscina, nas quadras de esporte, nos salões de dança, no restaurante, ele estava lá, deitado em sua cabine, lendo velhas revistas. Finalmente, melhorou um pouco e pôde sair.
Era uma noite de luar glorioso. Ele ficou olhando o mar, muito tranquilo. De repente percebeu que havia alguém a seu lado. Uma mulher, já de meia idade como ele, mas muito bonita. Elegantíssima, com um belo vestido e coberta de jóias. Começaram a conversar e logo estavam trocando confidências. Ela disse que era viúva, que há muito tempo não tinha contato com homens e que viera para o cruzeiro disposta a viver a grande aventura de sua vida. Talvez com você, disse, piscando o olho.
Fizeram amor ali mesmo, numa daquelas cadeiras preguiçosas que sempre são associadas a cruzeiros marítimos. Cansado (afinal, ainda estava convalescendo), acabou adormecendo. Quando acordou, o dia clareando, estava sozinho.
Passou os dois dias que se seguiram procurando a linda e misteriosa mulher. Não a via em lugar algum. Perguntou ao pessoal de bordo; ninguém sabia lhe informar, e até o olhavam de maneira estranha. Acabou desistindo da investigação.
De alguma maneira ele viveu um sonho. E, de alguma maneira está satisfeito. Mesmo porque não adianta reclamar. O pacote econômico por ele adquirido certamente não incluiria visões arrebatadoras.


Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.


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