São Paulo, domingo, 17 de dezembro de 2006

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"Só fizemos nosso trabalho", dizem os pilotos, recebidos como heróis

Advogado de americanos afirma que, se pessoas soubessem a verdade, não criticariam recepção feita nos EUA

Eles alegam que receberam ordem do centro de controle diferente do que estava no plano de vôo e que isso acontece em 99% dos vôos

DA ENVIADA ESPECIAL A NOVA YORK

Os pilotos Joe Lepore e Jan Paladino, do Legacy, dizem que não viram nem tiveram a mínima idéia de que o Boeing da Gol vinha na direção contrária e que só umas duas horas depois de pousar, sãos e salvos, na base militar da serra do Cachimbo, ficaram sabendo que um Boeing havia "sumido". Lepore, 42, nascido na Itália, filho de italianos, mudou-se para os EUA aos sete anos, é casado e tem dois filhos. Paladino, 34, pai argentino e mãe espanhola, também é casado, sem filhos. (ELIANE CANTANHÊDE)

FOLHA - Vocês conheciam bem o Legacy? Quanto tinham voado nele?
JOE LEPORE
- Sou piloto há 20 anos, treinei 20 horas no simulador e, além disso, tenho voado há bastante tempo em aviões bem semelhantes. O equipamento me era muito familiar. JAN PALADINO - Sou piloto há 16 anos, tinha voado bastante como comandante no Embraer 145, cópia exata do Legacy.

FOLHA - Ambos estavam acostumados o suficiente com os equipamentos, como o transponder?
LEPORE
- Com certeza. Tinha treinado muito no simulador, que tem os mesmos equipamentos, e estava perfeitamente confortável com a aeronave. PALADINO - Eu também.

FOLHA - Vocês estudaram adequadamente a rota e o plano de vôo?
LEPORE
- Eu olhei previamente diferentes possibilidades que poderiam nos dar no plano de vôo e, quando chegou, olhei detalhadamente com o Jan e digitei os pontos de navegação em nosso sistema de computador.

FOLHA - Então vocês sabiam que seria contramão voar em altitude ímpar entre Brasília e Manaus?
ROBERT TORRICELLA
- A questão é outra. É bastante comum que aeronaves tenham autorização para voar em altitudes não regulares ou padrão, isso depende dos centros de controle.

FOLHA - Como foi a autorização em São José? O que o controlador disse?
TORRICELLA
- Isso está sob investigação, eles não podem reproduzir a conversa, está sob sigilo.

FOLHA - Então, qual foi a autorização que receberam em São José?
LEPORE
- Eles me autorizaram a voar a 37 mil pés até Manaus.

FOLHA - Você concluiu que deveria ir nessa altitude todo o tempo?
LEPORE
- Se quisessem que nós fizéssemos algo diferente, eles teriam dito.

FOLHA - Segundo a Polícia Federal, um de vocês disse que não tinha entendido as instruções finais.
TORRICELLA
- A polícia não divulgou suas apurações publicamente, não se pode saber se há isso ou não no seu relatório.

FOLHA - Eu vi a transcrição e o delegado diz especificamente isso.
TORRICELLA
- A informação da Polícia Federal não é correta. Por isso devemos deixar os investigadores aeronáuticos profissionais fazerem seu trabalho.

FOLHA - Há dúvida se houve falha de comunicação entre a torre, que pode ter falado num só nível até Brasília, e os pilotos, que entenderam uma só altitude até Manaus.
TORRICELLA
- Não há nenhuma dúvida de que o controle de São José deu uma "clearance" para Manaus voando em 370 [37 mil pés]. A "clearance" se tornou o plano de vôo em vigor, e a lei exige que eles sigam isso. As regras são as mesmas no Brasil, nos EUA e internacionalmente.

FOLHA - Quando o controlador disse 370, vocês questionaram lembrando que o plano era diferente?
LEPORE
- Acontece o tempo todo, de você ter um plano de vôo num altitude e ser autorizado a voar em outro. Digamos que isso acontece 99% das vezes.

FOLHA - 99%?!
LEPORE
- É. Plano de vôo não passa de uma mera proposta. TORRICELLA - Plano de vôo é um pedaço de papel meramente.

FOLHA - O relatório preliminar disse que houve quase 30 tentativas frustradas de contato por rádio, sete dos controladores, o resto de vocês.
PALADINO
- Posso garantir que nossos rádios estavam funcionando apropriadamente, tanto que recebíamos transmissões em português de Brasília durante todo o vôo. Não entendemos uma palavra em português, mas sabíamos que o rádio estava funcionando bem. Quando nos aproximamos da FIR fronteira [saindo da órbita de controle de Brasília para a de Manaus], eu comecei a chamar o controle para ter certeza de que estávamos na freqüência correta. Quando não recebi resposta, segui os procedimentos e chequei no "chart" as freqüências apropriadas para aquela rota. Isso tomou alguns poucos minutos. Eu estabeleci uma comunicação de mão única desde o centro de controle, pedindo para mudar a freqüência. Não havia nenhuma urgência na voz do controlador, que apenas nos instruiu a contatar o centro de Manaus a partir dali em determinada freqüência. Infelizmente, não consegui ouvir toda a freqüência. Pedi para repetir, no processo de tentar restabelecer comunicação.

FOLHA - Se vocês tentaram 19 ou 20 contatos, sem sucesso, por que não digitaram o código 7600 no transponder, registrando dificuldade de comunicação?
PALADINO
- 7600 não é para dificuldade de contato com o centro de controle, é para falha de equipamento. Não era o caso. O rádio estava perfeitamente bom. O que nós temos de fazer, nesses casos, é procurar uma outra freqüência, mais apropriada na rota, e foi o que eu fiz.

FOLHA - Houve a hipótese de vocês terem desligado o transponder para fazer pirueta sem registro no radar.
PALADINO
- Foram acusações falsas. Sabíamos que as gravações da caixa-preta provariam que nada era verdade.

FOLHA - No relatório da PF, eles dizem que o transponder ficou desligado por 50 minutos. Por quê?
PALADINO
- Não vimos nenhuma prova de que o transponder estava inoperante, poderia ser outro problema. Não havia durante o vôo a indicação na cabine de que estava inoperante. TORRICELLA - Esse é o problema da investigação da polícia. Eles concluem coisas antes que os investigadores aeronáuticos, que são profissionais, cheguem a suas próprias conclusões.

FOLHA - O sinal do transponder sumiu do radar de Brasília, os investigadores aeronáuticos confirmaram.
PALADINO
- Onde estavam os controladores que não perceberam isso?

FOLHA - Vocês sabiam que o Legacy ficou completamente fora de qualquer radar por 20 minutos?
LEPORE
- Não. Como saberíamos? Só se o centro de controle tivesse nos alertado.

FOLHA - A polícia diz que há um diálogo entre vocês na caixa-preta confirmando que vocês sabiam que o transponder estava fora do ar.
TORRICELLA
- Nós não pretendemos tornar públicos detalhes específicos das gravações. Mas Joe e Jan já responderam que o transponder estava ok.

FOLHA - Vocês viram o Boeing?
LEPORE
- Não vimos nada. Sentimos uma forte sacudida, o piloto automático desligou, agarramos os controles e fizemos tudo para manter o avião voando. A asa estava muito atingida. Nós tínhamos o aeroporto mais próximo no display da cabine e voamos naquela direção.
PALADINO - No princípio, nem tivemos idéia de que alguma coisa tinha nos atingido. Pensamos que talvez tivesse tido falha estrutural. Ninguém poderia imaginar que outro avião tinha batido na gente.

FOLHA - Depois da colisão, como ficou o clima no Legacy?
LEPORE
- Todo mundo estava muito calmo. Fiquei feliz, pudemos nos concentrar no avião.

FOLHA - O primeiro contato por rádio foi com outro avião americano?
PALADINO
- Fizemos uma série de chamados de emergência e, finalmente, foi justamente um avião cargueiro [da Polar] que nos ouviu, respondeu e foi nossa ponte com Manaus.

FOLHA - Há ou não um buraco negro nos céus do Brasil?
LEPORE
- Não deveria estar lá.

FOLHA - Vocês têm acompanhado o caos nos aeroportos do Brasil?
LEPORE
- Vimos pela TV.
PALADINO - Com dez semanas [no Brasil], era possível pegar uma palavra e outra e entender.

FOLHA - Como foi esse período?
LEPORE
- Muito duro. Não sabíamos o que acontecia dia após dia, todas aquelas acusações sendo feitas, não tínhamos idéia do que ocorreria conosco.
PALADINO - Foi um tempo muito emocional e aquelas acusações contra nós... Em respeito às famílias, ficamos em silêncio. Nós queríamos que os fatos surgissem, sabíamos que isso eliminaria as falsas acusações. Nunca pensamos que ficaríamos tanto tempo detidos no Brasil. Assim, nós tínhamos medo. A nossa liberdade estava sendo tirada de nós.

FOLHA - Vocês estão muito pálidos. Não foram nenhuma vez à praia?
TORRICELLA
- Ficamos praticamente dentro do hotel [no Rio], mas em pelo menos duas oportunidades conseguimos sair.

FOLHA - A festa de recepção para vocês em Nova York, com tapete vermelho e tudo, pegou mal no Brasil. Afinal, 154 pessoas morreram.
TORRICELLA
- A razão foram as acusações falsas contra eles [pilotos]. Se as pessoas soubessem a verdade, não reagiram assim.

FOLHA - Vocês realmente se sentem heróis, apesar da tragédia?
PALADINO
- Apenas fizemos o nosso trabalho.


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