São Paulo, segunda-feira, 18 de outubro de 2004

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MOACYR SCLIAR

A voz do poder, o poder da voz

 Uma mulher que imitava a voz da governadora do Rio, Rosinha Matheus, foi presa no centro do Rio. Ela tentava libertar por telefone um homem que havia sido detido após tentar se passar por coronel do Corpo de Bombeiros. A mulher ligou para o celular do delegado Othon Alves Filho; localizada pelo número do telefone, foi detida e presa por estelionato.
Cotidiano, 11.out.2004

Quando seu companheiro foi preso, ela a princípio desesperou-se. Mas, depois, pensando sobre o assunto, viu que em realidade o destino estava lhe oferecendo uma oportunidade preciosa. Porque não viviam muito bem, os dois. Você é uma mulher burra, incompetente, era a acusação que ele freqüentemente lhe fazia, e que ela ouvia em silêncio, cabeça baixa. Agora, porém, podia provar a sua inteligência, a sua capacidade. Tudo o que precisava fazer era tirá-lo da prisão.
Mas como? Durante dias quebrou a cabeça, tentando encontrar um jeito de fazê-lo. Foi então que ouviu, pelo rádio, um pronunciamento de Rosinha Matheus. Deu-se conta de que sua voz era muito parecida com a da governadora. O que lhe deu uma idéia: libertaria seu companheiro pelo telefone. Imitando a voz da governadora faria uma ligação para o delegado: soltem imediatamente o Fulano. E sem dúvida seria obedecida: o poder é o poder, mesmo através de uma ligação telefônica, principalmente através de uma ligação telefônica. O policial não se atreveria a contestar a governadora.
Tomada a decisão, tratou de se preparar. Fez várias gravações da voz de Rosinha, gravações que escutava atentamente. Depois tratava de reproduzi-las, com o mesmo tom de voz, o mesmo timbre. Cada vez se saía melhor. Ao mesmo tempo, uma perturbadora modificação foi se operando nela. Já não era a mulher tímida, medrosa, de antes. Não: agora que falava com autoridade, sentia que incorporava esta autoridade. Até os vizinhos notavam: você fala como se mandasse na gente, diziam. O que em absoluto a desagradava. Pela primeira vez estava sentindo o gosto do poder.
Poder que agora mostraria a seu homem. Triunfaria onde ele havia fracassado. Coronel do Corpo de Bombeiros, ele? Que piada. Ela, sim, fizera a coisa direito. Tanto que tinha agora a voz de governadora, postura de governadora. Era outra, portanto, e daí em diante as coisas mudariam, teriam de mudar.
Descobriu quem era o delegado responsável pela prisão, ligou para o celular dele, deu a ordem de soltura. Não demorou muito uma viatura policial apareceu e ela foi presa.
Não negou o que tinha feito; só pediu para falar com o companheiro. Que já sabia do acontecido e reagiu de maneira habitual: você é burra e incompetente, mulher, você não faz nada direito.
Ela mirou-o com desprezo, virou as costas e foi embora. Ninguém poderia falar daquele jeito com uma governadora. Muito menos um reles prisioneiro.


O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.


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