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MOACYR SCLIAR
A voz do poder, o poder da voz
Uma mulher que imitava a voz da
governadora do Rio, Rosinha Matheus, foi presa no centro do Rio. Ela
tentava libertar por telefone um homem que havia sido detido após tentar se passar por coronel do Corpo de
Bombeiros. A mulher ligou para o celular do delegado Othon Alves Filho;
localizada pelo número do telefone,
foi detida e presa por estelionato.
Cotidiano, 11.out.2004
Quando seu companheiro
foi preso, ela a princípio desesperou-se. Mas, depois, pensando sobre o assunto, viu que em
realidade o destino estava lhe oferecendo uma oportunidade preciosa. Porque não viviam muito
bem, os dois. Você é uma mulher
burra, incompetente, era a acusação que ele freqüentemente lhe
fazia, e que ela ouvia em silêncio,
cabeça baixa. Agora, porém, podia provar a sua inteligência, a
sua capacidade. Tudo o que precisava fazer era tirá-lo da prisão.
Mas como? Durante dias quebrou a cabeça, tentando encontrar um jeito de fazê-lo. Foi então
que ouviu, pelo rádio, um pronunciamento de Rosinha Matheus. Deu-se conta de que sua
voz era muito parecida com a da
governadora. O que lhe deu uma
idéia: libertaria seu companheiro
pelo telefone. Imitando a voz da
governadora faria uma ligação
para o delegado: soltem imediatamente o Fulano. E sem dúvida
seria obedecida: o poder é o poder, mesmo através de uma ligação telefônica, principalmente
através de uma ligação telefônica.
O policial não se atreveria a contestar a governadora.
Tomada a decisão, tratou de se
preparar. Fez várias gravações da
voz de Rosinha, gravações que escutava atentamente. Depois tratava de reproduzi-las, com o mesmo tom de voz, o mesmo timbre.
Cada vez se saía melhor. Ao mesmo tempo, uma perturbadora
modificação foi se operando nela.
Já não era a mulher tímida, medrosa, de antes. Não: agora que
falava com autoridade, sentia
que incorporava esta autoridade.
Até os vizinhos notavam: você fala como se mandasse na gente, diziam. O que em absoluto a desagradava. Pela primeira vez estava
sentindo o gosto do poder.
Poder que agora mostraria a
seu homem. Triunfaria onde ele
havia fracassado. Coronel do
Corpo de Bombeiros, ele? Que
piada. Ela, sim, fizera a coisa direito. Tanto que tinha agora a voz
de governadora, postura de governadora. Era outra, portanto, e
daí em diante as coisas mudariam, teriam de mudar.
Descobriu quem era o delegado
responsável pela prisão, ligou para o celular dele, deu a ordem de
soltura. Não demorou muito uma
viatura policial apareceu e ela foi
presa.
Não negou o que tinha feito; só
pediu para falar com o companheiro. Que já sabia do acontecido e reagiu de maneira habitual:
você é burra e incompetente, mulher, você não faz nada direito.
Ela mirou-o com desprezo, virou as costas e foi embora. Ninguém poderia falar daquele jeito
com uma governadora. Muito
menos um reles prisioneiro.
O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de
ficção baseado em matérias publicadas
no jornal.
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