São Paulo, sábado, 19 de abril de 2008

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Entrevista - Ivone Zeger

"Cônjuge usa a empresa para ocultar bens e evitar partilha"

Justiça pode determinar que patrimônio de uma empresa seja usado, em caso de separação, na divisão de bens do casal, afima advogada

NO ANO PASSADO, a advogada Ivone Zeger propôs dar uma palestra numa dessas feiras de casamento. Estava disposta a orientar casais sobre a escolha do modo de união -com comunhão parcial/total ou separação de bens, por exemplo. Foi rechaçada no ato. "Pelo amor de Deus, não!", ouviu do interlocutor.
Especialista em direito de família, Zeger, 51, chegou a uma conclusão: "Quando casa, ninguém quer saber disso", afirma. "É preocupação com docinho, festa... Sobre o mais importante, não se fala." Segundo ela, é essencial saber, por exemplo, qual o regime mais apropriado para a partilha de bens quando o casamento acaba. Mas o assunto, diz, é uma espécie de tabu.

DA REDAÇÃO

Nas suas palestras, Zeger costuma abordar outro tema, que afirma ser recorrente em uniões civis: quando um dos parceiros, disposto a não dividir com o outro cônjuge o patrimônio acumulado no casamento, passa a elencar bens em nome da empresa. "É um recurso extremamente usado por empresários, homens ou mulheres, para camuflar ou dissimular o patrimônio", disse ela.
Para combater o problema, a advogada defende o uso de um recurso que, afirma, é crescente no Judiciário brasileiro: o uso de bens da pessoa jurídica para pagar, em caso de separação, obrigações da pessoa física.
Chamado de "desconsideração inversa da personalidade jurídica", o fenômeno permite corrigir a distorção -ao transferir parte do patrimônio da empresa para o cônjuge. Autora do livro "Como a Lei Resolve Questões de Família" (editora Mescla), Zeger falou à Folha no seu escritório, em Higienópolis (região central de SP). A seguir, trechos da entrevista.

 

FOLHA - Como ocorre a ocultação de patrimônio em empresas?
IVONE ZEGER -
Muitos empresários passam para a empresa os bens de alto valor. São imóveis, jóias, quadros valiosíssimos. Até para caracterizar que [o autor] não fez de má-fé, ele deixa alguma coisa no nome dele, da pessoa física. Aí, quando vai dividir, na partilha, diz à Justiça que só tem um casebre.

FOLHA - E na Justiça, de que forma o processo acontece?
IVONE -
O juiz vai verificar quais bens foram obtidos durante o período de convivência a ponto de fazer retornar para a pessoa física alguns bens (imóveis, por exemplo) ou fazer com que esse cônjuge compense o outro em dinheiro. O que não pode é deixar o ex-companheiro completamente sem recursos em caso de separação. Se o juiz entender que houve uso abusivo da empresa neste tipo de fato, ele pode notar a discrepância. Pode dizer: "Como o sr. quer dar uma pensão de R$ 1.000 se tem Jaguar, casa em Campos do Jordão?"

FOLHA - É possível dizer que esse fenômeno é crescente, tanto dos empresários quanto das pessoas que buscam a Justiça porque detectam que o parceiro colocou os bens em nome da empresa?
IVONE -
Sim, sim. Cada vez mais pessoas percebem que o parceiro coloca tudo no nome da empresa a ponto de ingressarem com demanda judicial. E esse recurso [transferir bens para a pessoa jurídica], velado, é extremamente usado por empresários, homens ou mulheres, para camuflar ou dissimular o patrimônio. Dizem "não tenho nada, é tudo da empresa", quando, na realidade, têm muitos automóveis, mora muito bem. Às vezes o empresário tem um pró-labore de R$ 1.000, baixíssimo, mas condição de vida incompatível com esse valor.

FOLHA - O uso da "desconsideração inversa da personalidade jurídica" é recente?
IVONE -
No direito de família, é uma coisa relativamente nova [é um recurso comumente usado em direito comercial], porque muitos empresários usam a empresa para tirar patrimônio para que o cônjuge não possa ter acesso. A Justiça está fazendo com que esses bens retornem para a pessoa física e sejam divididos com o ex-cônjuge.

FOLHA - Como essas empresas, ou pessoas, utilizam esse expediente?
IVONE -
Por meio, muitas vezes, de empresas de fachada, que pagam impostos e não têm movimentação. Normalmente o cônjuge vai dizer: não tenho nada, é tudo da empresa. As empresas existem, vão de vento em popa? Ótimo. A economia agradece. Porém uma coisa é uma empresa com finalidade comerciais. A outra, usar com finalidade de burlar.

FOLHA - Só empresas de fachada?
IVONE -
Não. Você pode comprovar que a empresa é ativa e verifica que ela existe, tem movimentação, e é anterior à união estável, ao casamento, mas que todos os bens que o casal conquistou foram imediatamente colocados na empresa.

FOLHA - Tirar recursos da empresa não pode afetá-la?
IVONE -
Você não precisa acabar com a empresa para fazer uma divisão. Afinal de contas, há maneiras de, em dinheiro, compensar. Em ações, por meio de alguma participação na empresa.

FOLHA - As pessoas conhecem seus direitos?
IVONE -
Sabe essas feiras de casamento? Essas que têm docinho, flor, têm vestido... Enfim, uma vez, falei [para um dos organizadores de um desses eventos]: "Puxa, por que não pôr uma palestra para as pessoas irem lá, saberem qual o regime de casamento, o que acontece com a dívida, o que ganha, o que perde. Sabe qual foi a resposta? "Pelo amor de Deus, não!". Quando casa, ninguém quer saber. É só o docinho, a festinha, o padre...


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