São Paulo, segunda-feira, 19 de maio de 2008

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MOACYR SCLIAR

Cara de velho, cabeça de velho


Só havia uma coisa a fazer: arranjar cara de velho (velho, para ele, era qualquer um com mais de 20 anos). Mas como?

 Rugas podem ser decisivas para comprar cigarro no Japão. Máquinas que vendem cigarros no Japão podem começar em breve a contar as rugas para verificar se quem está comprando tem idade suficiente para fumar. A idade legal para fumantes no Japão é de 20 anos.
Folha Online

QUANDO FICOU SABENDO que as máquinas de vender cigarros seriam equipadas com um dispositivo capaz de avaliar a idade do comprador pelas rugas de seu rosto, ficou irritado e preocupado. Irritado porque, apesar de ter apenas 13 anos, era um fumante inveterado, consumindo pelo menos uma carteira por dia, e não admitia que alguém tentasse impedi-lo de fazer isso. Várias vezes a mãe, viúva (o pai falecera quando ele era ainda criança), pedira que o filho deixasse de fumar; ele sempre respondia com impropérios. "Sou dono do meu nariz", gritava. "Pouco me importa se o fumo faz mal ou não, eu quero fumar e vou continuar fumando."
O problema, portanto, não era a mãe. O problema era a máquina. Com a mãe podia gritar, a mãe podia ser intimidada; a máquina não. Se a implacável lente mirando seu rosto transmitisse para o computador uma imagem incompatível com o rosto de um adulto, ele estaria simplesmente ferrado. A máquina era o lugar onde sempre comprava, porque em outros lugares jamais lhe venderiam o produto.
Só havia uma coisa a fazer: arranjar cara de velho (velho, para ele, era qualquer pessoa com mais de 20 anos). Mas de que maneira? Menino inteligente, várias possibilidades lhe ocorreram. A primeira: usar, diante da máquina, uma máscara de velho, dessas que são vendidas em lojas de disfarces. Mas isso seria um problema. Se, diante da máquina, colocasse a máscara, não faltaria alguém para denunciar a fraude aos responsáveis, o que seria no mínimo um aborrecimento.
Outra possibilidade: maquiagem. Tinha uma vizinha que era maquiadora profissional, poderia lhe pedir que o transformasse num ancião, ou pelo menos num adulto capaz de comprar cigarros. Mas isso exigiria que a procurasse periodicamente. A moça acabaria cansando dessa história. Além disso, a idéia de andar maquiado pela rua não lhe agradava.
Só restava uma alternativa: ficar mesmo com cara de velho. Sabia que rugas aparecem com o tempo, com as preocupações, com o sofrimento.
Mas poderia acelerar esse processo, mediante esforço pessoal. E foi o que fez: todos os dias ficava na frente do espelho, franzindo a testa, contraindo a face, tudo para produzir rugas. E rugas começaram mesmo a surgir, ou pelo menos assim ele o achava.
Mas ao mesmo tempo uma estranha mudança começou a ocorrer. Ele agora se sentia velho, olhava o mundo com olhos de velho, e de velho rabugento. Já não podia suportar garotos barulhentos, garotos desaforados, garotos que não respeitavam pessoas de idade.
A todo instante repreendia seus amigos, para espanto deles -e para espanto dele próprio. Meu Deus, pensava, não é que as rugas estão mesmo me envelhecendo? Só havia uma solução: parar de fumar. Foi o que fez. As rugas sumiram. Uma tossezinha seca que o incomodava sumiu. Não briga mais com a mãe. E aguarda com tranqüilidade o dia em que se transformará num velho, enrugado, mas contente consigo próprio.


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha


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