São Paulo, sábado, 19 de julho de 2008

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WALTER CENEVIVA

Tenhas teu corpo


O habeas corpus não é invenção brasileira, negando a tolice de dizer que essas coisas só acontecem no Brasil

A CONSTITUIÇÃO ASSEGURA o habeas corpus para que toda pessoa tenha o direito de ir e vir com liberdade. É o direito ao corpo, na transposição para o título de hoje, do nome clássico desse ato processual. O habeas corpus, sempre em latim, existe em muitos países. No direito norte-americano é ordem do juiz à autoridade policial para que o prisioneiro seja trazido à sua presença, a fim de verificar se a prisão é legal e, se for ilegal, libertá-lo. Com a fiança (depósito de importância em moeda, fixada pelo juiz), em casos específicos, o indiciado também responde ao processo em liberdade, que deve ser a regra. Nos crimes rumorosos, o "clamor público" estimula a crítica à liberdade dos acusados. É um tsunami de manifestações, muito ao gosto de quem reclama a volta dos governos militares ou pede mais poder para as polícias. Tenho, para o leitor que pense como esses críticos, uma proposta de cautela. Se estiver absolutamente certo de que as polícias são incorruptíveis na competente apuração dos delitos; sentindo-se seguro de que o Ministério Público só acusa alguém plenamente convencido da culpabilidade; se acreditar que o julgamento será sempre bem pensado por magistrados e júris, sem influências externas -mas justo e imparcial-, e que seu advogado será habilitado e diligente na defesa, critique o habeas corpus e lute para que acabe. Se, porém, tiver qualquer dúvida quanto a qualquer uma destas etapas, tome cuidado: a vítima pode ser você ou um dos seus, quando precise da revisão de uma prisão injusta.
Lembro a lição muito clara de Tales Castelo Branco, em seu ensaio sobre a prisão em flagrante ("Da Prisão em Flagrante", Saraiva, 563 páginas). Diz ele que "a prisão atinge a família, separa marido e mulher, pais e filhos, desfalca núcleos de trabalho, de amizade e solidariedade". Castelo Branco ensina ainda que o aprisionamento provisório ou temporário "repugna porque todo castigo antecipado é revoltante e atenta contra a dignidade da pessoa humana. É deletério porque retira da sanção a sua eventual expressão pedagógica, transformando-a apenas em martírio".
O complemento estatístico é necessário. Muitos erram por não saber que todos os dias dezenas ou centenas de habeas corpus são impetrados, até pela assistência judiciária gratuita, em todo o Brasil. A estatística distorce a apreciação da crítica apressada. No caso isoladíssimo de Salvatore Cacciola, a decisão do ministro Marco Aurélio foi correta. Cacciola é italiano; fugiu e foi recambiado. O Tribunal de Justiça de São Paulo julga centenas de habeas corpus por mês, de ricos, pobres e remediados, concedendo a ordem ou negando-a, sem alarde.
Ignorar a história do habeas corpus também distorce os fatos. Não é invenção brasileira, negando a tolice de dizer que essas coisas só acontecem no Brasil. O habeas corpus vem de 1215, na Inglaterra. São quase oito séculos de respeito à garantia prática e imediata da liberdade física. Aqui, a Constituição republicana de 1891 recolheu elementos das leis imperiais e, no campo das liberdades civis, da Constituição de 1824 (artigo 173). Mesmo sem conhecer o direito, a história e os números, é possível entender quanto é importante preservar o inocente, ainda que eventualmente beneficie o culpado.


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