São Paulo, segunda-feira, 19 de julho de 2010

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MOACYR SCLIAR

O lamento dos excluídos


Se encontrasse uma casa destinada a abrigar os desiludidos deste mundo, pediria que o aceitassem


Cães excluídos da adoção ganham tratamento vip em SP. Em vez de chihuahuas fofinhos, a advogada Audrei Feitosa, 39, preferiu acolher Kiko, um vira-lata "grande, velho e com dente todo podre". Ela se autodenomina protetora dos cães fracos e indefesos. Para preservar o título, monitora de seu apartamento, em Higienópolis, no centro de São Paulo, o resgate de animais abandonados. Quanto mais idade e problemas de saúde, mais o bicho vira "inadotável", diz. Para os rejeitados, ela e uma amiga mantêm, no sítio de um conhecido em Jundiaí (58 km de SP), cinco canis "de luxo", com ração premium, cobertores e cuidado veterinário. Juntas, pagam a um "caseiro canino"" R$ 200 por animal. Atualmente, são 30. A dona de casa Cleide Jacomini, 51, foi além. Aluga, na Freguesia do Ó, uma casa especialmente para dez cachorros recolhidos na rua.
Cotidiano, 5 de julho de 2010

ELE ERA morador de rua e orgulhava-se disso. De família rica, poderia ter sua própria casa e nela viver confortavelmente; mas, como declarava a quem quisesse ouvir, tratava-se de uma opção que era, ao mesmo tempo, existencial e política.
Viver na rua, como excluído voluntário, significava rejeitar a hipócrita conjuntura de que seus pais se beneficiavam; significa protestar contra um status quo caracterizado pela injustiça e pela desigualdade. Era o que repetia nos discursos que constantemente fazia nas praças, nas ruas, nas avenidas.
E que não tinham muito sucesso. Ninguém queria ouvi-lo.Os outros moradores de rua evitavam-no; não entendiam o que ele falava, ficavam irritados quando ele lhes dizia que não deveriam beber nem usar drogas. "Esse cara é maluco", murmuravam e tratavam de afastar-se. Ele vivia, pois, sozinho. Ou melhor, viveu sozinho até encontrar o Amigo -o nome que deu a um cachorro vira-latas, magro e sarnento, que, por alguma razão, passou a acompanhá-lo e que parecia ouvir, muito atento, suas arengas. Nasceu daí uma profunda amizade, a amizade que nunca tivera com ser humano algum. Partilhavam o alimento que ele encontrava no lixo, dormiam juntos sob os viadutos, ele abraçado ao cachorro.
"Nunca me separarei de você, nunca", costumava dizer ao Amigo que parecia retribuir, com o olhar, esta manifestação de carinho.
Mas um dia o Amigo sumiu. De manhã o homem acordou e o cachorro não estava ali. Desesperado, saiu a procurá-lo. Inutilmente: provavelmente alguém, um daqueles moradores de rua que o odiavam, sequestrara o bicho.
Meses se passaram sem que o sofrimento diminuísse. E um dia ele encontrou o Amigo. Estava no jardim de uma casa que, ele descobriu, funcionava como abrigo para cães abandonados. Contentíssimo, gritou, através das grades que cercavam o local: "Aqui, Amigo! Eu vim buscar você, Amigo!"
O cachorro simplesmente ignorou-o. Pior que isso, entrou na casa e desapareceu. Por uma boa meia hora ele ficou ali, desarvorado, sem saber o que fazer. E depois saiu a andar, como sempre, sem rumo. Se naquele momento encontrasse uma casa destinada a abrigar os desiludidos deste mundo, com toda a certeza pediria que o aceitassem.

MOACYR SCLIAR escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.

moacyr.scliar@uol.com.br


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