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MOACYR SCLIAR
O lamento dos excluídos
Se encontrasse uma casa destinada a abrigar os desiludidos deste mundo, pediria que o aceitassem
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Cães excluídos da adoção ganham tratamento vip em SP.
Em vez de chihuahuas fofinhos,
a advogada Audrei Feitosa, 39, preferiu acolher Kiko, um vira-lata
"grande, velho e com dente todo podre". Ela se autodenomina protetora dos cães fracos e indefesos. Para
preservar o título, monitora de seu
apartamento, em Higienópolis, no
centro de São Paulo, o resgate de
animais abandonados.
Quanto mais idade e problemas
de saúde, mais o bicho vira "inadotável", diz. Para os rejeitados, ela e
uma amiga mantêm, no sítio de um
conhecido em Jundiaí (58 km de
SP), cinco canis "de luxo", com ração premium, cobertores e cuidado
veterinário. Juntas, pagam a um
"caseiro canino"" R$ 200 por animal. Atualmente, são 30.
A dona de casa Cleide Jacomini,
51, foi além. Aluga, na Freguesia do
Ó, uma casa especialmente para
dez cachorros recolhidos na rua.
Cotidiano, 5 de julho de 2010
ELE ERA morador de rua e orgulhava-se disso. De família rica, poderia
ter sua própria casa e nela viver confortavelmente; mas, como declarava a quem quisesse ouvir, tratava-se
de uma opção que era, ao mesmo
tempo, existencial e política.
Viver na rua, como excluído voluntário, significava rejeitar a hipócrita conjuntura de que seus pais se
beneficiavam; significa protestar
contra um status quo caracterizado
pela injustiça e pela desigualdade.
Era o que repetia nos discursos que
constantemente fazia nas praças,
nas ruas, nas avenidas.
E que não tinham muito sucesso.
Ninguém queria ouvi-lo.Os outros
moradores de rua evitavam-no; não
entendiam o que ele falava, ficavam
irritados quando ele lhes dizia que
não deveriam beber nem usar drogas. "Esse cara é maluco", murmuravam e tratavam de afastar-se.
Ele vivia, pois, sozinho. Ou melhor, viveu sozinho até encontrar o
Amigo -o nome que deu a um cachorro vira-latas, magro e sarnento,
que, por alguma razão, passou a
acompanhá-lo e que parecia ouvir,
muito atento, suas arengas. Nasceu
daí uma profunda amizade, a amizade que nunca tivera com ser humano algum. Partilhavam o alimento que ele encontrava no lixo, dormiam juntos sob os viadutos, ele
abraçado ao cachorro.
"Nunca me separarei de você,
nunca", costumava dizer ao Amigo
que parecia retribuir, com o olhar,
esta manifestação de carinho.
Mas um dia o Amigo sumiu. De
manhã o homem acordou e o cachorro não estava ali. Desesperado,
saiu a procurá-lo. Inutilmente: provavelmente alguém, um daqueles
moradores de rua que o odiavam,
sequestrara o bicho.
Meses se passaram sem que o sofrimento diminuísse. E um dia ele
encontrou o Amigo. Estava no jardim de uma casa que, ele descobriu,
funcionava como abrigo para cães
abandonados. Contentíssimo, gritou, através das grades que cercavam o local: "Aqui, Amigo! Eu vim
buscar você, Amigo!"
O cachorro simplesmente ignorou-o. Pior que isso, entrou na casa e
desapareceu. Por uma boa meia hora ele ficou ali, desarvorado, sem saber o que fazer. E depois saiu a andar, como sempre, sem rumo. Se naquele momento encontrasse uma
casa destinada a abrigar os desiludidos deste mundo, com toda a certeza pediria que o aceitassem.
MOACYR SCLIAR escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias
publicadas no jornal.
moacyr.scliar@uol.com.br
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