São Paulo, domingo, 19 de novembro de 2006

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Boeing voava fora da altitude usual

Relatório preliminar sobre causas da colisão entre o Legacy e o avião da Gol omitiu informação

O nível habitual da rota Manaus-Brasília era de 41 mil pés. No dia do acidente o Boeing ia em 37 mil, com autorização do Cindacta-4

ELIANE CANTANHÊDE
COLUNISTA DA FOLHA

O relatório preliminar sobre as causas do maior acidente da história da aviação civil brasileira, no dia 29 de setembro, omitiu uma informação importante: o vôo 1907 da Gol, na rota Manaus-Brasília, estava numa altitude diferente da habitual. O nível usual era de 41 mil pés (12,5 km), mas justamente naquele dia o Boeing ia em 37 mil.
Foi nessa altura que veio a se chocar em Mato Grosso com o Legacy, que saiu de São José dos Campos (SP) com autorização do controle aéreo para voar em 37 mil pés até o aeroporto Eduardo Gomes, de Manaus, apesar de a aerovia UZ6, entre essas cidades, prever níveis pares em sentido norte. O plano de vôo original do Legacy previa três altitudes. Nesse trecho, 36 mil e depois 38 mil.
Os pilotos do Boeing da Gol procediam corretamente, porque o "vôo autorizado" pelo Cindacta-4 (centro de controle de tráfego aéreo de Manaus) era para 37 mil pés. Não foi divulgado, até agora, qual era o plano original e se previa 37 mil, como foi o vôo de fato, ou 41 mil pés, como era habitual.
A revelação acrescenta uma grave dúvida: os controles de São José, Brasília e Manaus não "conversaram" e por isso, sem saber que a altitude do Boeing não seria habitual, São José autorizou 37 mil até Manaus?
Curiosamente, o relatório preliminar da comissão que investiga o acidente, anunciado na quinta-feira passada, dá o plano de vôo original do Legacy, com as três altitudes (37 mil, 36 mil e 38 mil pés), mas não faz referência ao plano de vôo do Boeing. Limita-se a dizer que ele manteve-se em 37 mil pés até se chocar com o jato.
Conforme a Folha apurou, a suposição da comissão é que o Cindacta-4 pode ter autorizado um nível diferente do costumeiro para o Boeing porque se tratava de uma sexta-feira, o vôo tinha 154 pessoas a bordo e pode ter tido também uma carga mais pesada do que o padrão normal do vôo 1907. Aviões muito pesados devem voar em altitudes mais baixas.
A revelação aumenta a perplexidade dos advogados Theo Dias, brasileiro, e Robert Torricella, americano, responsáveis pela defesa dos pilotos do Legacy, os americanos Joe Lepore e Jan Paladino. Segundo Dias, houve um choque entre dois aviões, mas apenas um está sendo de fato investigado -o Legacy. Todos os dados de vôo, de tentativas de contato entre o centro de controle e a aeronave e de falhas de equipamentos referem-se apenas a ele. Não há os mesmos dados em relação ao Boeing. Aliás, nem ao Boeing nem aos procedimentos adotados pelo Cindacta-4, que deu a "clearance" para a decolagem do avião da Gol.
Ainda conforme a Folha apurou, a comissão que investiga o caso, presidida pelo coronel Rufino Ferreira, suspeita que um dos maiores, senão o maior problema, pode ter sido uma pane do sistema do jato, que era novo e fazia o primeiro vôo aos EUA, com parada técnica em Manaus. Três fatores reforçam a suspeita:
1 - Houve 27 tentativas de contato entre o Cindacta-1, de Brasília, e o Legacy, sem sucesso. Como outras aeronaves conseguiram contato no mesmo dia, pode ter havido, em vez de um "buraco negro" -que costuma ser passageiro-, uma falha dos equipamentos de rádio da aeronave.
2 - O transponder também falhou. Trata-se do instrumento que envia os dados do avião para o centro de controle e aciona, se necessário, o TCAS (sistema anti-colisão). Os pilotos já deram depoimentos oficiais garantindo que não desligaram o equipamento.
3 - O transponder voltou a funcionar em torno de três minutos depois do choque, já com o código de emergência, que é 7700. Como se tivesse sofrido um mau contato e, com o impacto, tivesse recuperado o funcionamento. A Aeronáutica trabalhou desde o início com a hipótese de "mau contato".
Apesar disso, não estão descartadas várias outras dúvidas, em relação ao nível de vôo do Legacy, que estava a 37 mil pés numa aerovia que exige níveis pares, em relação à eventual imperícia dos controladores de vôo e à existência de um "buraco negro" na Amazônia, comprometendo tanto os contatos por radar quanto por rádio.
Para a Aeronáutica, "buraco negro" é uma ocorrência eletromagnética que ocorre em vários pontos do mundo, e isso não prejudica a "excelente qualidade" de condições técnicas do espaço aéreo brasileiro. Além disso, "buracos negros" persistem por poucos minutos, não por tanto tempo a ponto de inviabilizar 27 tentativas de contato por rádio.
O novo dado das investigações, dando conta de que o Boeing estava numa altitude não habitual, não resolve nenhuma das questões, mas confere ainda maior complexidade às investigações de um acidente considerado "praticamente impossível" por experts e por autoridades aeronáuticas. Choques no ar são raríssimos.

Outro lado
O chefe do Cindacta-4, coronel Eduardo Carcavallo, disse ontem não ter informações sobre o nível habitual do vôo 1907 da Gol. "Não conheço o histórico do vôo em outros dias".
A reportagem tentou falar com a Gol, mas não conseguiu.


Colaborou Agência Folha


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