São Paulo, segunda-feira, 21 de abril de 2008

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MOACYR SCLIAR

O filho do palhaço


O filho resolveu vingá-lo; faria com que o palhaço Garnizé, pela primeira vez, ganhasse muito dinheiro

 "Uma joalheria foi assaltada no domingo em um shopping de São Paulo por um homem vestido de palhaço. Para levar relógios da loja, o palhaço explodiu a vitrine da The Graces, no Shopping Pátio Paulista, no bairro da Bela Vista (região central)." Cotidiano, 15 de abril de 2008

A INFÂNCIA DELE foi marcada por um trauma. Por causa do pai, que ganhava a vida trabalhando como palhaço em um pequeno circo de uma cidade do interior. Apresentava-se como o palhaço Garnizé, porque era baixinho, e fazia tudo que um palhaço tem de fazer: usava roupas de palhaço, chapéu de palhaço, maquiagem de palhaço, roupa de palhaço, sapatos de palhaço. Fazia todas as palhaçadas possíveis e imagináveis, e terminava caindo dentro de uma tina d'água.
Mas não tinha sucesso. Ninguém achava graça em seu ato; quando ele terminava, soavam alguns aplausos, mais de piedade do que de entusiasmo. Mas ele não se queixava. "Não sei fazer outra coisa para ganhar a vida", dizia, de modo que, enquanto o dono do circo deixasse, ele continuaria com aquilo. E o dono do circo deixava porque tinha pena do palhaço Garnizé, que precisava sustentar a mulher doente e cinco crianças.
O filho sofria por causa disso. Sofria porque a vida era dura, sofria por causa da doença da mãe, mas sobretudo sofria com a profissão do pai. No colégio, os colegas debochavam dele; mal aparecia, gritavam: "Lá vem o filho do palhaço". Ele não dizia nada; continha a raiva, fingia não escutar, mas era uma situação insuportável, aquela. Tão logo terminou o primeiro grau -e apesar dos pedidos do pai-, deixou os estudos: preferia trabalhar a ser objeto de gozação. Não adiantou; em qualquer emprego que arranjasse, sem demora descobriam quem era. E aí era uma pesada brincadeira atrás da outra.
Os anos passaram, o circo -que já não era grande coisa- ficou ainda mais decadente. Os animais morreram, os acrobatas, já velhos, deixaram de apresentar seus atos, a lona estava toda rasgada. O dono decidiu retirar-se do negócio. O palhaço tentou convencê-lo a continuar, mas o homem não quis saber: "Ajudei você como pude, Garnizé, mas agora não dá mais". O palhaço ainda tentou prosseguir em sua melancólica carreira, primeiro em bares e restaurantes, depois nas ruas; mas ninguém mais parava para vê-lo. Mesmo porque era um palhaço triste: a morte da mulher, de quem ele gostava muito, acabara de vez com sua alegria. Na falta de outro público, apresentava-se para os filhos, que tentavam rir, mas não conseguiam.
Finalmente, doente ele próprio, teve de ser hospitalizado. Os médicos disseram que era uma doença terminal. Mandou chamar o filho para um último pedido: queria que o rapaz guardasse suas roupas e que, se possível, de vez em quando, se apresentasse como palhaço. Contendo as lágrimas, o filho disse que sim, que faria aquilo. Naquele mesmo dia, o palhaço Garnizé morreu.
O filho resolveu vingá-lo, e de uma maneira muito simbólica. Faria com que o palhaço Garnizé, pela primeira vez, ganhasse dinheiro, ganhasse muito dinheiro. Foi assim que concebeu o plano de, vestido como palhaço, assaltar uma joalheria. Um ato violento, que incluiria a explosão de uma vitrine e chegaria ao clímax quando gritasse para todos ouvirem: - Estão pensando que eu sou palhaço?
Mas não havia ninguém para ouvi-lo, naquele momento. Levando muitos relógios, ele se retirou. Como nas últimas apresentações do pai, não houve nenhum aplauso.


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha


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