|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MOACYR SCLIAR
O filho do palhaço
O filho resolveu vingá-lo; faria com que o palhaço Garnizé, pela primeira vez, ganhasse muito dinheiro
|
"Uma joalheria foi assaltada no domingo em um shopping de São Paulo por um
homem vestido de palhaço. Para levar
relógios da loja, o palhaço explodiu a vitrine da The Graces, no Shopping Pátio
Paulista, no bairro da Bela Vista (região
central)." Cotidiano, 15 de abril de 2008
A INFÂNCIA DELE foi marcada
por um trauma. Por causa do
pai, que ganhava a vida trabalhando como palhaço em um pequeno circo de uma cidade do interior.
Apresentava-se como o palhaço
Garnizé, porque era baixinho, e fazia
tudo que um palhaço tem de fazer:
usava roupas de palhaço, chapéu de
palhaço, maquiagem de palhaço,
roupa de palhaço, sapatos de palhaço. Fazia todas as palhaçadas possíveis e imagináveis, e terminava caindo dentro de uma tina d'água.
Mas não tinha sucesso. Ninguém
achava graça em seu ato; quando ele
terminava, soavam alguns aplausos,
mais de piedade do que de entusiasmo. Mas ele não se queixava. "Não
sei fazer outra coisa para ganhar a vida", dizia, de modo que, enquanto o
dono do circo deixasse, ele continuaria com aquilo. E o dono do circo
deixava porque tinha pena do palhaço Garnizé, que precisava sustentar
a mulher doente e cinco crianças.
O filho sofria por causa disso. Sofria porque a vida era dura, sofria por
causa da doença da mãe, mas sobretudo sofria com a profissão do pai.
No colégio, os colegas debochavam
dele; mal aparecia, gritavam: "Lá
vem o filho do palhaço". Ele não dizia nada; continha a raiva, fingia não
escutar, mas era uma situação insuportável, aquela. Tão logo terminou
o primeiro grau -e apesar dos pedidos do pai-, deixou os estudos: preferia trabalhar a ser objeto de gozação. Não adiantou; em qualquer emprego que arranjasse, sem demora
descobriam quem era. E aí era uma
pesada brincadeira atrás da outra.
Os anos passaram, o circo -que já
não era grande coisa- ficou ainda
mais decadente. Os animais morreram, os acrobatas, já velhos, deixaram de apresentar seus atos, a lona
estava toda rasgada. O dono decidiu
retirar-se do negócio. O palhaço tentou convencê-lo a continuar, mas o
homem não quis saber: "Ajudei você
como pude, Garnizé, mas agora não
dá mais". O palhaço ainda tentou
prosseguir em sua melancólica carreira, primeiro em bares e restaurantes, depois nas ruas; mas ninguém mais parava para vê-lo. Mesmo porque era um palhaço triste: a
morte da mulher, de quem ele gostava muito, acabara de vez com sua
alegria. Na falta de outro público,
apresentava-se para os filhos, que
tentavam rir, mas não conseguiam.
Finalmente, doente ele próprio, teve
de ser hospitalizado. Os médicos
disseram que era uma doença terminal. Mandou chamar o filho para
um último pedido: queria que o rapaz guardasse suas roupas e que, se
possível, de vez em quando, se apresentasse como palhaço. Contendo
as lágrimas, o filho disse que sim,
que faria aquilo. Naquele mesmo
dia, o palhaço Garnizé morreu.
O filho resolveu vingá-lo, e de uma
maneira muito simbólica. Faria com
que o palhaço Garnizé, pela primeira vez, ganhasse dinheiro, ganhasse
muito dinheiro. Foi assim que concebeu o plano de, vestido como palhaço, assaltar uma joalheria. Um
ato violento, que incluiria a explosão
de uma vitrine e chegaria ao clímax
quando gritasse para todos ouvirem:
- Estão pensando que eu sou
palhaço?
Mas não havia ninguém para ouvi-lo, naquele momento. Levando muitos relógios, ele se retirou. Como nas
últimas apresentações do pai, não
houve nenhum aplauso.
MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto
de ficção baseado em notícias publicadas na Folha
Texto Anterior: Reação ao caso Isabella é "sadomasoquista", diz criminalista Próximo Texto: Consumo: Consumidora é revistada por segurança de hipermercado Índice
|