São Paulo, domingo, 21 de maio de 2006

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ARTIGO

Cultura do desespero

Condições de prisões pioraram em 25 anos; faltam verbas e sobram detentos

LUIZ ALBERTO MENDES
ESPECIAL PARA A FOLHA

HÁ CERCA DE 25 anos, o sistema prisional do Estado de São Paulo estava bastante bem aparelhado. A sociedade se importava com o homem aprisionado. Prisão era terrível e o preso respeitado pela dureza de sua condição existencial.
A Penitenciária do Estado possuía um hospital que realizava até pequenas cirurgias. Os médicos eram os melhores possíveis: dr. Atílio, o oftalmologista, possuía consultório na região dos Jardins. Dr. Paulo Sérgio, ortopedista, era médico do São Paulo Futebol Clube. Havia o Senai, com cerca de 30 cursos cujos certificados eram respeitados em todo o país. O setor de educação, além de alfabetizar (e era obrigatório pelo menos o primário) propunha cursos de desenhos, inglês, escriturário, arquivista, outros cursos.
Na minha última passagem pela Penitenciária do Estado, há cinco anos, o hospital tornara-se local de trânsito para presos de outras prisões. O convênio com o Senai foi extinto em 1987, por conta de uma rebelião. As favelas, os cortiços aumentaram assustadoramente. São Paulo transformou-se numa megalópole. A pobreza foi multiplicada e transformou-se em miséria na proporção em que o desemprego e a população cresceram muito acima do previsto. Por conseqüência, a violência desenvolveu-se, a brutalidade progrediu.
Então, a população carcerária, essa ponta do iceberg, como queria Marx, começou a aumentar desproporcionalmente. As verbas para sustentar essa explosão demográfica prisional continuou a mesma. O sistema entrou em crise e começou a ser sucateado. A superpopulação das prisões chegou a absurdos que todos nós vimos nas reportagens de lá a esta parte. O colapso se estabeleceu e o preso foi abandonado nas mãos dos diretores e dos guardas de prisão. Estes, despreparados, implantaram a lei do cano de ferro (espancamento com cano de ferro), a política da cela forte e do isolamento em prisões cada vez mais duras. Violência em cima de violência.
O ser humano faz cultura onde estiver, é de sua natureza. Abandonado a si mesmo e vindo diretamente do ato criminoso, este homem preso só pode fazer a cultura do crime. Não conhece outra. A cultura da união para se defender da opressão. Está preso, mas continua humano, e lutar pela sobrevivência faz parte da condição humana. Nada diferente lhes foi oferecido. Foi enterrado vivo, em pé e abandonado.
A sociedade fez como quem joga uma bomba para cima e espera que ela crie asas e saia voando para o infinito. Enquanto o preso estava atrás das muralhas de grades, pouco lhes importa a condição. Se comprimido, oprimido, espancado, ou estupidificado, não era interessante saber. Importava mantê-lo distante da possibilidade de atacar, ou seja, atrás das grades.
Mas veja: surpresa! A bomba não voa. Começa a cair e detonar toda a nitroglicerina acumulada em décadas de abandono. O abandono, o isolamento social e físico, geraram tudo isso que se vê nestes dias de terror em São Paulo. Somos todos responsáveis por tudo o que está acontecendo.
Este não é um problema somente de Estado ou de polícia, é de toda a sociedade a se repensar e tomar atitudes menos demagógicas e absurdas. Por exemplo: a maioria das pessoas pensa que ao sair da prisão (como nos enlatados americanos), o egresso recebe um lugar para dormir, trabalho e ainda o mantêm sob vigilância. Isso não existe. No máximo, recebe um bilhete para São Paulo e um pé na bunda: se vira!
Se não tiver família, amigos, retornará à prisão (o índice de reincidência é 65%) ou vira mendigo, esta gente apagada socialmente nas praças da cidade. Muitos dos que habitam os albergues noturnos são ex-presidiários que não conseguiram a reintegração social.
Existe os que não sabem, e a esses é possível esclarecer. Mas o pior são os que não querem saber, terão de ser esclarecidos.


LUIZ ALBERTO MENDES, 54, é autor de "Memórias de um Sobrevivente" e passou 31 anos preso


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