São Paulo, quinta, 21 de maio de 1998

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OPINIÃO
Direito à cidade

TEIXEIRA COELHO

O rodízio estadual de carros em São Paulo entra em seu terceiro ano. Em três anos, não se tomou nenhuma medida realmente eficaz de combate às causas da poluição ou do acúmulo de veículos.
O que devia ser emergencial e provisório torna-se permanente, como é praxe no país. É a perenização da falsa solução. Faz-se o mais fácil, o que dá mais publicidade, o mais demagógico. O resto, que devia ser o principal, só quando ninguém suportar mais.
Os carros particulares só sairão das ruas quando houver um sistema de transporte coletivo decente. É mais do que sabido. Mas se pretende ignorar aqui o que é cartilha primária no resto do mundo.
Na verdade, algo de novo aconteceu, sim: os lotações. Quer dizer, mais veículos nas ruas, circulando de modo ainda mais anárquico, e mais emissão de poluentes. E a prefeitura anuncia a construção de novas garagens subterrâneas na zona da cidade que integra a área submetida ao rodízio municipal!
Todos fingem não perceber a violência dessas trágicas contradições. Enquanto isso, o metrô continua em suas dimensões ridículas para uma cidade deste tamanho e os ônibus se apresentam como o recurso mais eficaz de humilhação cotidiana de seus usuários.
Parecem veículos policiais ou de carga, com grades e ferros internos, dirigidos de modo perigoso para os que vão dentro e para os que o seguem de fora. A tarifa é alta, vergonhosos os salários de motoristas e cobradores (e estes estão sendo eliminados). Mas, de conforto oferecido, nem vestígio.
Ar-condicionado em ônibus e metrô é perfeitamente viável, como em várias cidades grandes do mundo. Contribuiriam para a qualidade geral de vida na cidade. Seriam um instante de civilização.
Nem pensar, dizem as empresas e a administração pública. Como de hábito nesta terra, deve-se considerar que os de renda baixa não o merecem e que não se deve fazer concorrência ao transporte individual, quer dizer, às montadoras de veículos. Não há outra explicação.
A cidade se torna inviável. E "invivível". Está sendo destruída. A culpa não é dos usuários, como os discursos oficiais sempre dão a entender. A responsabilidade é dos administradores, nas várias esferas. Se houvesse um plano de destruição deliberada da cidade, o resultado não seria mais eficaz.
Neste final de século, é claríssimo que existe um "direito à cidade". A feliz expressão é de Henri Lefèvre, num pequeno livro publicado há 30 anos, época em que o caos urbano ainda não se configurava. A cidade não é uma dádiva, é um direito. Não pode se recusar aos que estão fora dela; e dentro dela não podem existir cidades proibidas, fechadas à circulação.
Mas é isso que acontece. E por lei -o que é mais imoral e revela a incúria audaciosa dos administradores e a passividade intolerável de todos os outros (nós). Não se sai às ruas por insegurança e porque não há como circular por elas. É o contrário da idéia de cidade.
Outros fatores trazem sua poderosa contribuição para esse estado de cidade sitiada (no qual uma das feridas mais agressivas é a pichação abjeta -porém resistível- de quilômetros de ruas e casas).
A construção indiscriminada de shopping centers, que matam o comércio de rua e eliminam um ponto de atração para o pedestre, tem muito a responder nesse processo. A gota d'água simbólica, porém, é o rodízio que se eterniza. Não tanto por si mesmo, mas pela ausência total de iniciativas concretas que tenta encobrir.
A afirmação de um direito à cidade não é feita só em nome de lazer, estética ou conveniência de indivíduos e grupos. Quem ergue essa bandeira não é o "flâneur" de um outro final de século, o 19.
Esse direito tem tremendas implicações econômicas e sociais. Sua falência é mais do que a falência da cidade. Cidades podem falir, como Nova York há alguns anos. Algumas, como Nova York, se reerguem. Outras, não. São Paulo não está indo à falência: com a cumplicidade geral, está sendo destruída. E a destruição tende a ser mais duradoura que a falência.


José Teixeira Coelho Neto, 54, ensaísta e escritor, é professor da Escola de Comunicações e Artes da USP (Universidade de São Paulo). Coordenou o "Dicionário Crítico de Política Cultural" (editora Iluminuras)



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