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MOACYR SCLIAR
A vida em leilão
O Ebay (empresa de comércio eletrônico) suspendeu o leilão de três mulheres vietnamitas que estavam sendo oferecidas na internet por, no mínimo, US$ 5.400. Folha Online,
15.mar.2004
A notícia, embora grotesca
e até deprimente, deu-lhe
uma idéia: descobrir o quanto valia num leilão semelhante. Dúvida até certo ponto explicável: garota linda no passado, ela fora
considerada destruidora de corações. Agora, aos 47 anos, casada,
mãe de três filhos, tinha perdido
muitos de seus encantos, mas continuava vaidosa. Como a Rainha
da história da Branca de Neve,
muitas vezes perguntava ao
espelho: espelho, espelho meu,
existe no mundo coroa mais enxuta do que eu?
O espelho não respondia, mas a
internet poderia fazê-lo, inclusive
quantificando a resposta sob a
forma de cifras; números, como
disse lorde Kelvin, representam a
forma mais adequada de expressar a verdade. Verdade que ela,
entre parênteses, não temia; tinha
confiança absoluta em seus encantos. Só não tivera aventuras
porque era fiel ao marido, homem digno, sábio, compreensivo.
Foi ao marido que ela recorreu
para proceder ao leilão. Tudo seria feito da forma mais discreta
possível; ela se apresentaria com
um pseudônimo ("Rainha"). Na
foto, o rosto seria coberto com um
véu; só apareceria o corpo, aquele
corpo que, apesar dos anos e das
gravidezes, continuava escultural. Em suma, seria apenas uma
brincadeira, um jogo, que o esposo, disso estava segura, compreenderia e aceitaria, ajudando-a
com a internet, na qual ela era
completamente ignorante.
Ele ouviu o pedido e não disse
nada. Preparou ele próprio as fotos e um pequeno texto; introduziu esse material num site de leilões e ficaram à espera, ela, muito
excitada, muito esperançosa, ele
calado como sempre.
Os dias passavam e nenhuma
oferta aparecia. Aliás, nem ofertas, nem mensagens. De vez em
quando, uma piadinha de mau
gosto, e só.
Ela começou a ficar deprimida e
irritada, tão deprimida e irritada
quanto a Rainha ao ouvir do espelho a notícia sobre a existência
da Branca de Neve. Eu não valho
mais nada, dizia ao marido, eu
sou um lixo, não sei como você
ainda me suporta.
Quando sua auto-estima estava
chegando ao ponto mais baixo,
apareceu uma oferta. Era de alguém que se identificava apenas
como "Príncipe" e oferecia
R$ 2.000 para passar uma noite
com ela. Logo depois, nova oferta,
esta assinada por "Rei": R$ 3.500.
Já "Imperador" propunha
R$ 5.000 (em duas vezes).
Feliz, ela disse ao marido que
podia cancelar o anúncio: sim, estava convencida de que ainda valia alguma coisa. Continuam vivendo muito bem, só que ele, homem antes sisudo, agora sorri
com certa freqüência. Ela tem
uma suspeita a respeito; acha que
ele é o "Príncipe", o "Rei", o "Imperador". Mesmo assim, não lhe
pergunta nada. Entre casais que
vivem juntos há muito tempo, às
vezes o silêncio é uma excelente
forma de comunicação. Melhor
que qualquer internet.
Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção
baseado em reportagens publicadas no
jornal.
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