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Lapsos na memória atingem até mesmo as tarefas cotidianas
Quando a atenção fica dividida ou uma atividade é executada no chamado "piloto automático", a região do lobo frontal não funciona de maneira adequada
FABIANE LEITE
ROBERTO DE OLIVEIRA
DA REVISTA DA FOLHA
Há coisas que a gente nunca
esquece. Quarenta e oito anos
se passaram e as imagens ainda
estão nítidas na memória da
aposentada Dinorah de Souza.
Ela se lembra da empolgação
do pai, Miguel Porporato, à
época com 27 anos, rumo ao estádio do Canindé (zona norte
de São Paulo). Fanático por futebol, as partidas de várzea
eram seu programa predileto
nas manhãs de sábado.
Em uma delas Dinorah, então com três anos, saiu de casa,
no Pari (centro), de mãos dadas
com o pai, e foi ao Canindé. Assistiu ao jogo grudadinha a ele.
Ao voltar para casa, Miguel estava só. Esquecera Dinorah.
Naquele dia, os ânimos estavam inflamados e houve briga
entre torcedores. "Para me
proteger, meu pai me colocou
debaixo da arquibancada, que
era de madeira." Dinorah calcula ter ficado seis horas ali, sozinha. "Lembro de ele ter me
acordado. Estava claro ainda."
Os mecanismos da memória
que fazem Dinorah guardar até
o tom do céu naquele dia podem falhar em determinadas
situações e levar a desfechos
trágicos como o da família de
Gustavo Garcia, o bebê de um
ano que foi esquecido no carro
pelo pai e morreu após ficar
trancado por quatro horas.
Esquecimento
O sofrimento que trazem casos como o de Gustavo isola o
episódio de outras histórias de
esquecimento, como faltar a
um compromisso ou perder o
aniversário de um amigo. Mas,
na verdade, as mesmas falhas
podem explicar os dois casos.
Psicólogos, psiquiatras e
neurologistas colheram as primeiras pistas do que ocorre no
cérebro há mais de 50 anos estudando pacientes com lesões
no cérebro. Foi assim que se
concluiu que são cruciais para a
construção -ou desconstrução- da memória o lobo frontal, que atua na codificação, e o
hipocampo, onde são armazenados alguns tipos de memória.
Nos últimos dez anos, ficou
mais fácil investigar os lapsos.
Exames de imagem como a ressonância magnética permitem
observar reações do cérebro
durante processos de aprendizagem e memorização.
Sabe-se hoje, por exemplo,
que quando dividimos a atenção ou executamos uma atividade de modo automático a região do lobo frontal não funciona adequadamente.
Piloto automático
Estudos desde o fim dos anos
80 indicam que a divisão crônica da atenção leva a falhas na
memória semelhantes às causadas pelo envelhecimento. A
divisão da atenção pode ocorrer principalmente nas atividades rotineiras, tão mecânicas
que o cérebro não precisa de esforço para codificá-las. É nesse
conhecido "piloto automático"
que fatos importantes podem
passar despercebidos.
"A gente vive um ritmo tão
alucinado que bloqueia, involuntariamente, informações
importantes", diz a professora
Elaine Cristina Fonseca, 37.
A "informação importante"
que Elaine bloqueou no ano
passado foi buscar o filho na escola. Envolvida em negociações
dos professores municipais
com a prefeitura durante greve
do setor, ela se esqueceu de pegar o caçula. Pedro Henrique, 5,
ficou esperando pela mãe por
mais de duas horas, ao lado de
uma funcionária do colégio.
O exemplo de Elaine contraria a idéia de que pais e mães
desenvolvem laços de tons diferentes em relação à prole. Na
busca por explicações para o esquecimento de crianças pelos
pais, mulheres atribuem a responsabilidade ao homem.
Parte dos especialistas ouvidos não acha que homens e mulheres absorvam e armazenem
informação de modo diferente.
"Essas pretensas diferenças
são uma tremenda bobagem. O
chavão de que a mulher tem um
pensamento mais holístico e o
homem, unidirecional, não
existe", diz o neuropsiquiatra
Claudio Santos, da Universidade Federal de São Paulo.
Magdalena Ramos, 67, psicóloga do Núcleo de Casal e Família da PUC-SP, vê o caso de outra perspectiva, a cultural.
"Historicamente, tarefas domésticas eram função da mãe.
Só recentemente é que ela angariou outras funções, com a
presença no mercado de trabalho." A mãe, para a terapeuta de
casais, mantém uma ligação
com a prole "mais visceral".
Sete pecados
O professor do Departamento de Psicologia da Universidade Harvard (EUA) Daniel L.
Schacter tem 20 anos de estudos sobre a memória e catalogou sete tipos de lapso no livro
"Os Sete Pecados da Memória".
"Exatamente como os sete
pecados capitais, os da memória ocorrem com freqüência e
podem ter conseqüências desastrosas", conta Schacter no
livro, lançado no Brasil pela
Rocco. Assim, os esquecimentos de Miguel e Elaine viram
exemplos do pecado da distração. "Isso ocorre, em parte,
porque a memória é muito dependente de sinais e lembretes
para recuperar informações."
O problema é quando essas
pistas para a lembrança são
embaralhadas pelo congestionamento de dados. O neuropsiquiatra Cláudio dos Santos, da
Unifesp, explica que não dá para guardar tudo -é preciso escolher o que vale armazenar.
O criticado piloto automático serve para que ninguém
"gaste neurônios" com tarefas
já assimiladas pelo cérebro. Assim, esquecer é fundamental.
Para dar lugar a novas idéias e
experiências.
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