São Paulo, domingo, 22 de abril de 2007

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Lapsos na memória atingem até mesmo as tarefas cotidianas

Quando a atenção fica dividida ou uma atividade é executada no chamado "piloto automático", a região do lobo frontal não funciona de maneira adequada

FABIANE LEITE
ROBERTO DE OLIVEIRA
DA REVISTA DA FOLHA

Há coisas que a gente nunca esquece. Quarenta e oito anos se passaram e as imagens ainda estão nítidas na memória da aposentada Dinorah de Souza. Ela se lembra da empolgação do pai, Miguel Porporato, à época com 27 anos, rumo ao estádio do Canindé (zona norte de São Paulo). Fanático por futebol, as partidas de várzea eram seu programa predileto nas manhãs de sábado.
Em uma delas Dinorah, então com três anos, saiu de casa, no Pari (centro), de mãos dadas com o pai, e foi ao Canindé. Assistiu ao jogo grudadinha a ele. Ao voltar para casa, Miguel estava só. Esquecera Dinorah.
Naquele dia, os ânimos estavam inflamados e houve briga entre torcedores. "Para me proteger, meu pai me colocou debaixo da arquibancada, que era de madeira." Dinorah calcula ter ficado seis horas ali, sozinha. "Lembro de ele ter me acordado. Estava claro ainda."
Os mecanismos da memória que fazem Dinorah guardar até o tom do céu naquele dia podem falhar em determinadas situações e levar a desfechos trágicos como o da família de Gustavo Garcia, o bebê de um ano que foi esquecido no carro pelo pai e morreu após ficar trancado por quatro horas.

Esquecimento
O sofrimento que trazem casos como o de Gustavo isola o episódio de outras histórias de esquecimento, como faltar a um compromisso ou perder o aniversário de um amigo. Mas, na verdade, as mesmas falhas podem explicar os dois casos.
Psicólogos, psiquiatras e neurologistas colheram as primeiras pistas do que ocorre no cérebro há mais de 50 anos estudando pacientes com lesões no cérebro. Foi assim que se concluiu que são cruciais para a construção -ou desconstrução- da memória o lobo frontal, que atua na codificação, e o hipocampo, onde são armazenados alguns tipos de memória.
Nos últimos dez anos, ficou mais fácil investigar os lapsos. Exames de imagem como a ressonância magnética permitem observar reações do cérebro durante processos de aprendizagem e memorização.
Sabe-se hoje, por exemplo, que quando dividimos a atenção ou executamos uma atividade de modo automático a região do lobo frontal não funciona adequadamente.

Piloto automático
Estudos desde o fim dos anos 80 indicam que a divisão crônica da atenção leva a falhas na memória semelhantes às causadas pelo envelhecimento. A divisão da atenção pode ocorrer principalmente nas atividades rotineiras, tão mecânicas que o cérebro não precisa de esforço para codificá-las. É nesse conhecido "piloto automático" que fatos importantes podem passar despercebidos.
"A gente vive um ritmo tão alucinado que bloqueia, involuntariamente, informações importantes", diz a professora Elaine Cristina Fonseca, 37.
A "informação importante" que Elaine bloqueou no ano passado foi buscar o filho na escola. Envolvida em negociações dos professores municipais com a prefeitura durante greve do setor, ela se esqueceu de pegar o caçula. Pedro Henrique, 5, ficou esperando pela mãe por mais de duas horas, ao lado de uma funcionária do colégio.
O exemplo de Elaine contraria a idéia de que pais e mães desenvolvem laços de tons diferentes em relação à prole. Na busca por explicações para o esquecimento de crianças pelos pais, mulheres atribuem a responsabilidade ao homem.
Parte dos especialistas ouvidos não acha que homens e mulheres absorvam e armazenem informação de modo diferente. "Essas pretensas diferenças são uma tremenda bobagem. O chavão de que a mulher tem um pensamento mais holístico e o homem, unidirecional, não existe", diz o neuropsiquiatra Claudio Santos, da Universidade Federal de São Paulo.
Magdalena Ramos, 67, psicóloga do Núcleo de Casal e Família da PUC-SP, vê o caso de outra perspectiva, a cultural. "Historicamente, tarefas domésticas eram função da mãe. Só recentemente é que ela angariou outras funções, com a presença no mercado de trabalho." A mãe, para a terapeuta de casais, mantém uma ligação com a prole "mais visceral".

Sete pecados
O professor do Departamento de Psicologia da Universidade Harvard (EUA) Daniel L. Schacter tem 20 anos de estudos sobre a memória e catalogou sete tipos de lapso no livro "Os Sete Pecados da Memória".
"Exatamente como os sete pecados capitais, os da memória ocorrem com freqüência e podem ter conseqüências desastrosas", conta Schacter no livro, lançado no Brasil pela Rocco. Assim, os esquecimentos de Miguel e Elaine viram exemplos do pecado da distração. "Isso ocorre, em parte, porque a memória é muito dependente de sinais e lembretes para recuperar informações."
O problema é quando essas pistas para a lembrança são embaralhadas pelo congestionamento de dados. O neuropsiquiatra Cláudio dos Santos, da Unifesp, explica que não dá para guardar tudo -é preciso escolher o que vale armazenar.
O criticado piloto automático serve para que ninguém "gaste neurônios" com tarefas já assimiladas pelo cérebro. Assim, esquecer é fundamental. Para dar lugar a novas idéias e experiências.


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