São Paulo, segunda-feira, 22 de setembro de 2008

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MOACYR SCLIAR

Um pesadelo americano


Bush, certa manhã, levanta e olha-se no espelho; constata que, durante a noite, cresceu-lhe uma barba como a de Fidel

Governo americano estatiza 80% da seguradora AIG. Com os grandes bancos americanos se recusando a emprestar dinheiro para a AIG, o governo dos Estados Unidos, por meio do Federal Reserve, vai dar um empréstimo de US$ 85 bilhões para a maior seguradora do mundo. Folha Online

Bush estatiza. Palavras importam e o governo dos Estados Unidos evita admitir que estatizou as maiores empresas de crédito imobiliário do país. Mas foi exatamente o que fez a administração George W.Bush. Editorial, 9 de setembro de 2008

EU TENHO um sonho, confidenciou o presidente George W.Bush a um amigo íntimo: Um sonho recorrente, que me deixa muito angustiado. Na verdade é um pesadelo. Não existia o sonho americano, dos imigrantes que vinham para cá em busca de liberdade e prosperidade? Pois eu acabo de descobrir que existe um pesadelo americano.
No sonho, ou pesadelo, George W.Bush acorda uma manhã sentindo-se esquisito. Levanta-se, vai se olhar ao espelho e constata que, durante a noite, cresceu-lhe a barba.
Uma barba enorme, viçosa. Uma barba semelhante à do Fidel Castro de Sierra Maestra. E ah, sim, uma barba semelhante à de Karl Marx, cujo retrato Bush viu algumas vezes e que é para ele uma remota figura do passado, sem qualquer importância no presente. Mas agora é obrigado a pensar em Marx. E é obrigado a pensar em Fidel Castro, e até em Guevara, que também tinha barba.
O que o deixa apavorado. O barbeiro da Casa Branca é chamado e tenta, inutilmente, remover aquela barba. Não consegue. Mal corta uns fios, outros brotam em seguida, com extraordinária rapidez. Bush tornou-se irremediavelmente barbudo. E então nota, para seu crescente pavor, que não apenas seu rosto mudou. O mesmo aconteceu com sua cabeça, com seu modo de pensar.
Quando os jornalistas lhe perguntavam se o governo havia optado pela estatização, ele desconversava. Agora, não. Agora o que dirá -e isto é um impulso irresistível- é que está, sim, estatizando. E que não se limitará a empresas de crédito imobiliário ou seguradoras. Tudo será estatizado. Bancos, indústrias, o McDonald's, a Coca-Cola, tudo. E sem indenização. Confisco simples e estamos conversados. Claro, para isto ele terá de tomar providências. Em primeiro lugar, precisará de um partido político forte. Os indecisos republicanos não lhe servem. Criará uma nova agremiação, com um hino (que pode começar com a frase "De pé, ó vítimas da fome"), com um lema (algo como "Proletários do mundo inteiro, uni-vos"), com uma bandeira -a cor vermelha lhe parece particularmente sugestiva.
Os adversários políticos certamente não gostarão, mas a regra será a do pensamento único. Quem discordar poderá ir embora, ou então passar uma temporada em campos de recuperação ideológica. Mais importante que tudo, porém, a economia será planejada, rigorosamente planejada. Crises, colapsos? Nunca mais. A felicidade econômica reinará para sempre.
Este é o sonho (ou pesadelo) que atormenta o presidente e do qual ele tenta livrar-se. Já experimentou várias espécies de soníferos, sem êxito.
Se ao menos a Bolsa subisse, se o transportasse àquelas alturas onde reina paz e sossego, ele enfim poderia dormir em paz. O que, ao fim e ao cabo, é o seu verdadeiro sonho.


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha


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