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ARTIGO
Não temos cidadãos, temos paulistanos
MARCELO COELHO
Colunista da Folha
Gilberto Dimenstein está de
férias. Ocupo o lugar dele para falar sobre São Paulo. Tenho o pressentimento de que ele não vai
concordar muito comigo. Dimenstein é um otimista, gosta da
cidade e participa de ações comunitárias para melhorá-la.
Já minha opinião sobre São
Paulo é muito... paulistana: pessimista, mal-humorada e pouco solidária. Reflete, aliás, a atitude da
maioria dos entrevistados, segundo o Datafolha.
Moro na Vila Madalena, bairro
ótimo. Do meu apartamento, tenho uma linda vista sobre um valezinho e, no horizonte, piscam as
torres das emissoras de TV. O problema de lugares com vista bonita
é que eles são cheios de ladeiras.
Já não sou de dar grandes caminhadas, e tantas subidas e descidas me desencorajam.
Há algumas semanas, entretanto, eu estava andando pelo bairro. Esfalfava-me por uma encosta
difícil, quando me chamaram, a
meio quarteirão de distância.
Era o Gilberto Dimenstein. Ele
trabalha com várias escolas da região. Disse-me que todo dia dá
grandes caminhadas pelo bairro.
Aí entendi melhor o seu gosto
pela cidade. A pé, uma pessoa vive mais sua cidade, tem mais contato com o meio.
Parece bobagem? Não sei. O cotidiano da classe média, em São
Paulo, resume-se a sair de casa
para o trabalho, em geral de carro, e a passar a maior parte das
horas de lazer no shopping. Caminha-se apenas nos parques cercados ou na esteira ergométrica.
Suspeito que isso faça diferença.
A diferença consiste no seguinte:
não saímos, nunca, de espaços
privados. O espaço público é praticamente desconhecido do paulistano médio.
O carro é o espaço privado por
excelência, onde nos incomodam
para vender chicletes e pedir esmolas. O shopping, resguardado,
não permite o acaso, o sol, a sombra; não tem habitantes, tem consumidores. Da casa e do trabalho,
não precisamos falar.
O resultado é que uma das
maiores cidades do mundo termina sem ter vida urbana digna
desse nome.
Quem vai a Buenos Aires, para
não dizer nada dos países desenvolvidos, sabe que na rua "acontecem as coisas". O habitante, o
citadino, é alguém que sente a cidade como sua e, ao mesmo tempo, a sente como sendo de todos os
demais.
Aqui em São Paulo, não tenho a
cidade como algo que seja ao
mesmo tempo próprio e geral. De
meu, tenho meu carro e minha
casa. O resto ou é hostil, ou é algo
a meu serviço, como um shopping
ou um clube.
Talvez por isso a cidade seja um
reduto da mentalidade mais privatista, egoística, amedrontada e
dura de que se tem notícia no
Brasil. Que o paulistano seja pouco solidário, como indica a pesquisa do Datafolha, não é surpresa. Seu cotidiano é inteiro dominado pela lógica da vida privada.
Não é culpa do paulistano, claro. A cidade reflete problemas de
insegurança, de capitalismo selvagem, de desigualdade social
que só poderiam dar nesse egoísmo, nessa mesquinhez... Nesse
descontentamento que mesmo os
privilegiados sentem sem parar.
O pior não é que o paulistano
seja pouco solidário. Acho isso remediável. O pior é que o paulistano é pouco cidadão.
Pois a situação clássica de cidadania, para voltar à descrição
que fiz alguns parágrafos acima,
a propósito de Buenos Aires, é
aquela em que o interesse privado, o raciocínio individual, de alguma forma se combina com a
idéia de que há algo coletivo em
jogo.
O balanço entre vontade geral e
vontade particular é, desde o século 18, o fundamento da vida política, da vida urbana. Repito com
duas palavras diferentes -"pólis", "urbs"- aquilo que sempre
identificou cidade com cidadania, com urbanidade, com civilização, com política.
Quando Maluf é eleito e quando a Câmara Municipal se compõe de escroques, o que vemos é
uma espécie de elogio do interesse
privado sem cidadania. O eleitor
não é ingênuo. Escolhe pessoas
que sabe serem corruptas, porque
representam o máximo de interesse privado, e o mínimo de interesse público, que ele próprio reconhece como seu reflexo mais
autêntico.
Em São Paulo, os momentos de
manifestação popular, de protesto, de vida política, ou se dão em
casos de grande comoção nacional (as diretas-já, o impeachment
de Collor) ou se fazem em torno
de interesses muito particulares.
Nesse último caso, ocupa-se a
avenida Paulista. O trânsito fica
horrível. O paulistano médio reclama. Buzina. Não sai de seu casulo.
Certa vez, no Rio, parei numa
lanchonete do centro para tomar
um café. Ao meu lado, um senhor
negro, de bigodinho aparado e
chapéu verde-escuro, punha adoçante na xícara. Pensei, um pouco
arbitrariamente: "eis aí um cidadão". Eu não estava longe do que
na época se chamava de "Brizolândia", zona de pedestres aberta
à panfletagem e a protestos de todo o tipo. Eu era um cidadão,
também. Aqui, não temos cidadãos. Temos paulistanos.
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