São Paulo, segunda-feira, 23 de julho de 2007

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MOACYR SCLIAR

Os dilemas do esquecimento


O procedimento foi rápido. O pesquisador pediu que ele evocasse a recordação dolorosa e apertou um botão

 Cérebro humano apaga lembranças com carga emocional, diz estudo. Duas áreas da parte pré-frontal do cérebro humano servem para apagar as lembranças tanto em seu aspecto sensorial como emocional, segundo um estudo publicado pela revista "Science".
Brendan Depue, do Departamento de Psicologia da Universidade do Colorado, em Boulder, e seus colegas usaram imagens funcionais de ressonância magnética para examinar as regiões que sustentam o processamento da memória no cérebro. Verificaram que lembranças podem ser suprimidas. A pesquisa amplia o conhecimento e a compreensão dos mecanismos cerebrais envolvidos no controle da memória e do pensamento. Ciência

POUCO DEPOIS de ter sido divulgada a notícia sobre a possibilidade de suprimir lembranças penosas, um discreto anúncio foi divulgado num jornal da cidade: um instituto de pesquisas estava em busca de voluntários que quisessem fazer exatamente aquilo que fora noticiado: apagar, da memória, lembranças penosas. Procedimento indolor, seguro, eficaz. Aquilo mexeu com ele. Porque havia, sim, algo que queria apagar de sua memória, um doloroso trauma.
Uma recordação penosa e que não o deixava em paz. Por que, então, não recorrer à ciência? Se se tratasse de uma dor no ombro, ou no joelho, ele não hesitaria em procurar o médico; nada indicava que não devesse fazer o mesmo com o sofrimento emocional. Claro, bem que ele preferia enfrentar, de cabeça erguida, o infortúnio pelo qual passara, sem demonstrações de fraqueza; como dizia seu pai, homem não chora, e ele tinha orgulho de sua hombridade. Mas a dor foi mais forte e no dia seguinte lá estava ele, no instituto de pesquisas.
Foi encaminhado a um jovem pesquisador, que o recebeu com um sorriso afável e indagou se estava pronto a se submeter à experiência.
Com uma condição: queria absoluto sigilo. O pesquisador tranqüilizou-o: só nós dois saberemos do que se passou aqui, disse. E eu sou absolutamente confiável, acrescentou, com um sorriso.
O procedimento foi rápido. Um aparelho foi colocado sobre seu crânio, o pesquisador pediu que ele evocasse a recordação dolorosa e aí apertou um botão. Ouviu-se um zumbido e, no instante seguinte, ele já não lembrava mais nada daquilo que lhe causara tanto sofrimento.
De que se tratara, mesmo? De uma mulher que o rejeitara? Aparentemente sim, mas que mulher? Como se chamava, onde vivia?
Ainda espantado, despediu-se do pesquisador e foi para casa. Achou que sua vida se transformaria, que poderia se divertir, conhecer mulheres. Realmente isso aconteceu, mas mesmo assim a inquietude persistia.
Por fim deu-se conta: o que agora o incomodava era o fato de ele ter esquecido. Queria lembrar o tal incidente, por mais deprimente que fosse. Voltaria a sofrer, talvez, mas isso não lhe importava: era a verdade que ele buscava, a amarga verdade. E só uma pessoa podia lhe dizer o que, afinal, ele tinha olvidado: o pesquisador. Foi ao instituto, falou com a secretária. Ela arregalou os olhos: - Mas então você não sabe? O doutor morreu num acidente!
Sem uma palavra, ele voltou para casa. Com a certeza de que existe um lugar onde se concentram aquelas coisas que queremos, que precisamos, esquecer. Só que ele não sabe onde fica esse lugar. Sua esperança é de que o Destino um dia o faça encontrar-se com o seu passado. E que ele possa descobrir, nesse passado, a sua verdade.


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha


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