São Paulo, segunda-feira, 23 de agosto de 2010

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MOACYR SCLIAR

O desabafo da balança


Ronaldo, o jogador, quer saber quanto está pesando, e eu falo com honestidade. O que mais posso fazer?

Ronaldo admite briga com a balança.
Folha Online

"AMIGAS BALANÇAS, antes de mais nada vou me apresentar. Sou a balança do Ronaldo, o famoso Ronaldo, o jogador de futebol que assombrou e assombra o mundo com suas jogadas maravilhosas.
Com o Ronaldo convivo de uma forma, posso dizer, íntima. Todos os dias ele vem a mim para se pesar. O que, dirão vocês, deveria ser motivo de orgulho. E é motivo de orgulho.
Mas não só. Infelizmente, não só motivo de orgulho.
Ronaldo quer saber quanto está pesando. E esta informação eu a ele forneço, com toda a simplicidade, com toda a honestidade. O que mais podemos fazer nós, as balanças, senão revelar a uma pessoa quanto, exatamente, ela está pesando?
Acontece que nem todos gostam da verdade. Nem todos gostam de constatar que estão acima do peso. E aí resmungam, aí se queixam. Queixam-se a quem? A nós, balanças. Somos silenciosas testemunhas da decepção, da frustração, da raiva que resultam de alguns quilos, ou de muitos quilos, em excesso.
A notícia que muitas vezes damos não é boa. Isso faz lembrar aqueles monarcas do passado, que mandavam degolar os mensageiros portadores de más novas. Balanças não podem ser degoladas; mas balanças podem servir de válvula de escape. "Não pode ser, você está mentindo, balança malvada, eu não estou pesando tudo isso."
Nem sempre foi assim, colegas. Lembrem o episódio bíblico de Daniel, ao interpretar para o rei Belshazar as misteriosas palavras que a mão de Deus havia inscrito na parede do palácio: "Foste pesado na balança e encontrado em falta". A balança decidiu o destino do rei.
Claro, tratava-se de uma balança especial, de uma balança divina, mas será que a simples existência desta balança não confere a todas nós, suas humildes irmãs, uma dignidade especial?
Será que não merecemos um tratamento, digamos, mais respeitoso? Notem, não estou pedindo homenagens e nem mesmo gratidão. Estou pedindo apenas que não briguem conosco, que reconheçam: limitamo-nos a cumprir nossa obrigação.
Eu gostaria que o grande Ronaldo compreendesse minha posição. Mas, se ele insistir nesta disposição de brigar, creio que cabe uma reação, um protesto. Em conjunto: sabemos, queridas companheiras, que a união faz a força.
Unidas, nada teremos a perder, a não ser esta antiga situação de submissão. Chega de ofensas. Já não basta que pisem em nós com todos aqueles quilos, precisam ainda praguejar, dizer desaforos?
Unidas, nós nos disporemos, não como um time de futebol (a nossa imobilidade impede a prática do esporte), mas numa simples fila. E, enfileiradas, deixaremos que os Ronaldos de nosso mundo verifiquem, de forma sistemática, o seu peso.
À muda pergunta que estará em sua cabeça (quanto peso?) responderemos de forma cortês, mas implacável, sempre com o mesmo número de quilos. E acrescentaremos, à maneira da Bíblia: "Foste pesado na balança e a verdade agora te está sendo revelada".
Isso pode resultar numa mágica reversão de expectativas. É possível que Ronaldo emagreça. É possível que opte pela leveza; pela amável convivência, ao invés da briga. No futebol, como na vida, é muito melhor pegar leve.
Esse é um argumento de peso: se Ronaldo aceitá-lo, teremos um final feliz, aquele final com que sonham os jogadores, os seres humanos em geral e, claro, as balanças."


MOACYR SCLIAR escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.

moacyr.scliar@uol.com.br


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