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MOACYR SCLIAR
O desabafo da balança
Ronaldo, o jogador, quer saber quanto está pesando, e eu falo com honestidade. O que mais posso fazer?
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Ronaldo admite briga com a
balança.
Folha Online
"AMIGAS BALANÇAS, antes de
mais nada vou me apresentar. Sou a
balança do Ronaldo, o famoso Ronaldo, o jogador de futebol que assombrou e assombra o mundo com
suas jogadas maravilhosas.
Com o Ronaldo convivo de uma
forma, posso dizer, íntima. Todos os
dias ele vem a mim para se pesar. O
que, dirão vocês, deveria ser motivo
de orgulho. E é motivo de orgulho.
Mas não só. Infelizmente, não só
motivo de orgulho.
Ronaldo quer saber quanto está
pesando. E esta informação eu a ele
forneço, com toda a simplicidade,
com toda a honestidade. O que mais
podemos fazer nós, as balanças, senão revelar a uma pessoa quanto,
exatamente, ela está pesando?
Acontece que nem todos gostam
da verdade. Nem todos gostam de
constatar que estão acima do peso.
E aí resmungam, aí se queixam.
Queixam-se a quem? A nós, balanças. Somos silenciosas testemunhas
da decepção, da frustração, da raiva que resultam de alguns quilos, ou
de muitos quilos, em excesso.
A notícia que muitas vezes damos
não é boa. Isso faz lembrar aqueles
monarcas do passado, que mandavam degolar os mensageiros portadores de más novas. Balanças não
podem ser degoladas; mas balanças podem servir de válvula de escape. "Não pode ser, você está mentindo, balança malvada, eu não estou
pesando tudo isso."
Nem sempre foi assim, colegas.
Lembrem o episódio bíblico de Daniel, ao interpretar para o rei
Belshazar as misteriosas palavras
que a mão de Deus havia inscrito na
parede do palácio: "Foste pesado
na balança e encontrado em falta".
A balança decidiu o destino do rei.
Claro, tratava-se de uma balança
especial, de uma balança divina,
mas será que a simples existência
desta balança não confere a todas
nós, suas humildes irmãs, uma dignidade especial?
Será que não merecemos um tratamento, digamos, mais respeitoso?
Notem, não estou pedindo homenagens e nem mesmo gratidão. Estou
pedindo apenas que não briguem
conosco, que reconheçam: limitamo-nos a cumprir nossa obrigação.
Eu gostaria que o grande Ronaldo
compreendesse minha posição.
Mas, se ele insistir nesta disposição
de brigar, creio que cabe uma reação, um protesto. Em conjunto: sabemos, queridas companheiras, que
a união faz a força.
Unidas, nada teremos a perder, a
não ser esta antiga situação de submissão. Chega de ofensas. Já não
basta que pisem em nós com todos
aqueles quilos, precisam ainda praguejar, dizer desaforos?
Unidas, nós nos disporemos, não
como um time de futebol (a nossa
imobilidade impede a prática do esporte), mas numa simples fila. E, enfileiradas, deixaremos que os Ronaldos de nosso mundo verifiquem, de
forma sistemática, o seu peso.
À muda pergunta que estará em
sua cabeça (quanto peso?) responderemos de forma cortês, mas implacável, sempre com o mesmo número de quilos. E acrescentaremos,
à maneira da Bíblia: "Foste pesado
na balança e a verdade agora te está sendo revelada".
Isso pode resultar numa mágica
reversão de expectativas. É possível
que Ronaldo emagreça. É possível
que opte pela leveza; pela amável
convivência, ao invés da briga. No
futebol, como na vida, é muito melhor pegar leve.
Esse é um argumento de peso: se
Ronaldo aceitá-lo, teremos um final
feliz, aquele final com que sonham
os jogadores, os seres humanos em
geral e, claro, as balanças."
MOACYR SCLIAR escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias
publicadas no jornal.
moacyr.scliar@uol.com.br
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