São Paulo, domingo, 23 de setembro de 2007

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José, 54, fica dois anos preso por engano

Sem documentos, perdidos em enchente, catador de papelão foi confundido com outro José, que é branco e 14 anos mais jovem

Com identidade trocada, "herdou" crime de tentativa de homicídio; vítima não reconheceu foto dele como sendo o criminoso

ROGÉRIO PAGNAN
DA REPORTAGEM LOCAL

Depois de dois anos e seis meses, o catador de papelão José Machado Sobral, 54, negro, conseguiu na última sexta-feira voltar para casa para comer a refeição que a mulher preparava quando ele saiu pela última vez: um prato de canjica.
Nesse intervalo, José esteve preso no CDP (Centro de Detenção Provisória) em Guarulhos (Grande SP), acusado de um crime que não cometeu, praticado por outro José, este Manuel de Sobral, branco, 14 anos mais novo.
O infortúnio de José Machado ocorreu no momento que ele dizia ser o melhor da sua vida. Em 10 de março de 2005, o catador completava um mês de namoro com a doméstica Neuza Alice de Jesus Dias, 54, e, com a ajuda dela, experimentava a sensação inédita de ter um carro -pago com R$ 1.500, uma TV e "um som". "Ele estava batido, mas eu arrumei inteirinho. Coloquei uns bancos, pintei. Ficou lindo."
Naquele dia, relata, planejava ir a Pernambuco, sua terra natal, que deixou em 1992, para renovar documentos, depois de perder originais numa enchente. Diz que se esqueceu da falta de habilitação. A polícia o lembrou ao flagrá-lo ao volante.
Conta que, levado à delegacia, descobriu que o veículo era roubado. Tornou-se suspeito de receptação. Descobriu também que a polícia erra: o delegado Aquiles Martins deu-lhe o nome do outro José, procurado em Pernambuco por crime de 1998 -tentativa de homicídio.
"O indiciado se identificou como José Machado Sobral e afirma categoricamente não ser a pessoa de José Manuel de Sobral", disse o delegado no relato da prisão em flagrante.
Confinado na prisão, seu caso passou aos cuidados do juiz Rodrigo Capez, que tentou, por um ano, descobrir sua identidade real. As digitais de José estavam perdidas entre 300 mil fichas de papel nos arquivos do Estado de Pernambuco.
Em março de 2006, o juiz mandou libertá-lo. Mas faltava o alvará de soltura da Justiça pernambucana para a acusação de tentativa de homicídio. José ficou, então, esquecido numa cela com mais 20 homens.
Só no último dia 6 uma foto foi mostrada a uma vítima do outro José. "O acusado é bem mais novo", disse ela no reconhecimento assinado pelo juiz Leonardo Asfora, de PE.
A dúvida estava desfeita, mas não o imbróglio jurídico. Capez não podia libertar o catador porque não atua no caso do atentado. Asfora também não, porque não mandou prendê-lo.
José Machado deixou a cadeia dois dias depois de o defensor Bruno Lopes de Oliveira apresentar novo pedido (um já havia sido negado) à juíza Ana Lucia Fernandes Queiroga. "Ponha incontinenti em liberdade, se por al [alguma coisa] não estiver preso, José Machado Sobral [...] qualificado, aparentemente por equívoco, como sendo José Manuel de Sobral", escreveu a juíza.
A mulher de José estava à sua espera na saída do CDP. Ele chorou quando a viu. "Vou poder comer a canjica que ela estava fazendo." Agora, José diz que buscará documentos para provar que é ele mesmo.

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