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São Paulo, domingo, 23 de novembro de 2003

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COMENTÁRIO

"Minha mulher emprestou o carro a um bandido"

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

Recebi, em abril, um telefonema da delegacia de Birigui (interior do Estado de São Paulo). Não sei onde fica Birigui. O escrivão queria saber onde estava o meu carro. A pergunta soava estapafúrdia, ainda mais vindo de um estranho.
"Na garagem", respondi. "Tem certeza?" Eu titubeei: "Absoluta". Ele continuou: "Aqui tem um sujeito com o seu carro (placa, marca, modelo, ano, número de chassis e cor idênticos), com os seus documentos, dizendo que pegou o carro emprestado com a sua mulher". Era só o começo.
O carro foi apreendido pelos policiais depois de uma denúncia anônima. O motorista ficou em liberdade, já que era "gente boa", segundo o escrivão, que me interrompeu quando comecei a berrar no telefone: "Ele está mentindo! É um bandido!". E agora o que eu devia fazer? "Nada", me disse o escrivão. "Qualquer coisa, voltamos a ligar."
Quatro meses depois, quando fui licenciar o carro pela internet, só restava uma opção: segunda via. Achei estranho, mas não dei importância. Não juntei as duas coisas. Podia ter me enganado e apertado a tecla errada no computador. Segunda via você retira no Detran. E lá fui eu.
No Detran, descobri que o carro já havia sido licenciado. Como? Quando? Em abril. Ah! Então, estava explicado. E eu relatei toda a situação ao funcionário, garantindo que o veículo clonado tinha sido apreendido em Birigui. O funcionário, impassível, me entregou um formulário. O texto impresso relatava a minha surpresa ao descobrir que o meu carro já havia sido licenciado por terceiros. Bastava assinar. A julgar pelo formulário impresso, só os proprietários deviam ficar surpresos, porque aquilo tudo já era rotina para os funcionários do Detran.
Incríveis mesmo eram as multas - que bastavam para me fazer perder a carteira. Multas de excesso de velocidade, todas de infrações cometidas num mesmo lugar por onde eu nunca passava, ainda menos de madrugada. E mais incríveis ainda eram as datas das multas. Se o carro clonado tinha sido realmente apreendido em abril (e se ainda estava na delegacia de Birigui), como era possível que continuasse sendo multado em agosto, nas ruas de São Paulo? A resposta eu só teria ao final de três meses de visitas à corregedoria do Detran.
É uma sorte que as multas agora venham com fotografia. Ao recebê-las em casa, notei que o carro do infrator e a placa podiam parecer idênticos ao meu carro e à minha placa, mas o desenho dos números não. Comecei a minha via crúcis pelo Detran. Tentava convencê-los (com as fotos nas mãos) de que o meu carro tinha sido clonado duas vezes em quatro meses (a menos que o "clone original" tivesse escapado da delegacia de Birigui), mas a possibilidade de dois "dublês", como eles dizem, era "inverossímil". Eu perguntava: "E se eu deparar com o clone do meu carro na rua?". Resposta: "Segue ele e liga para a polícia". Nem é preciso dizer que passei a ver clones por todos os lados, em todos os carros da mesma marca e da mesma cor que o meu.
Quando novas multas começaram a chegar, assim como os meus recursos indeferidos pelo DSV (apesar das provas incontestáveis da diferença entre os formatos dos algarismos nas placas), voltei à corregedoria decidido a me desfazer do carro. Pelo que levantaram no processo, o primeiro clone ("o original") continuava apreendido. A ficha criminal do motorista a quem "minha mulher tinha emprestado o carro" revelou que se tratava de um bandido contumaz. Havia de fato um clone do clone solto nas ruas. Acho que o delegado ficou com pena de mim. Como o caso era excepcional, resolveram trocar o número da minha placa. A história podia ter acabado com o meu casamento. Se eu fosse casado.



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