São Paulo, segunda-feira, 24 de junho de 2002 |
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SEGURANÇA Em busca de sequestrador em favela de SP, ação policial deixou feridos dez civis que estavam em uma quermesse "Prefiro presos à corja da lei", diz morador
ARMANDO ANTENORE DA REPORTAGEM LOCAL "Nasci de novo." Nunca um clichê soou tão preciso quanto na boca daquele pedreiro de 28 anos. Quarta-feira passada, enquanto trabalhava, ele recordava, incrédulo, como escapou de engrossar a já extensa lista dos civis mortos durante operações policiais. "Uma bala perdida me atingiu logo abaixo do umbigo." O forte impacto derrubou-o. À maneira de um milagre, porém, o tiro errático acertou justamente o zíper da calça jeans que estava usando. Bateu bem ali, no fecho, e desviou, sem causar ferimentos graves. Para provar, o rapaz exibia não só o zíper danificado, mas também a barriga levemente chamuscada e com um pequeno inchaço. "Acredita agora?" A "ressurreição" se deu na madrugada do último dia 16, um domingo. O pedreiro, que não quer se identificar, participava de uma quermesse em Cidade Júlia, bairro periférico da zona sul paulistana. Era pouco mais de 0h quando o bangue-bangue começou. De um lado, agentes à paisana do DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa). Do lado oposto, Mauro Sérgio Santos de Souza, 20, o Serginho, acusado de integrar o grupo que, há cinco meses, sequestrou e matou o prefeito Celso Daniel, de Santo André. Em meio aos tiros, centenas de moradores locais, que se divertiam na festa de rua. O tiroteio acabou levando à prisão de Serginho, baleado perto da coluna vertebral. Resultou, contudo, em outros dez feridos. Apenas um é da polícia. Os nove restantes (quatro crianças, dois adolescentes, o pedreiro e mais dois adultos) não tinham nenhum envolvimento com o caso. "Entramos de gaiato no navio e podíamos estar liquidados", resume o estudante de 15 anos que recebeu um disparo no tornozelo direito. O projétil lhe rasgou a perna e trincou um osso. Enfaixado, o garoto deverá permanecer dois meses sem pisar no chão. Em Cidade Júlia -vasta favela fronteiriça à do Jardim Pantanal, um dos lugares que serviram de cativeiro para Celso Daniel-, a população se mostra inconformada. Julga que a polícia agiu irresponsavelmente. Iniciou o tiroteio sem se preocupar com os que circulavam pela quermesse. "Você acha que algo semelhante aconteceria num bairro de rico?", pergunta uma jovem que assistiu à confusão. "Os policiais não tinham o direito de fazer a patifaria que fizeram. Não respeitaram grávidas, idosos, moleques, ninguém", protesta outra mulher. Entre vítimas e testemunhas, difícil garimpar quem aceite dizer o nome. Quase todos temem represálias. "Aqui, o mocinho atua como bandido. O silêncio é nosso melhor companheiro", argumenta o dono de um boteco. O DHPP refuta as críticas. Afirma que seus agentes só atiraram porque Serginho disparou primeiro -ele estaria com um revólver calibre 38 (leia texto nesta página). "O episódio parece sério e exige a abertura de uma sindicância que apure a legitimidade da operação", avalia Roberto Maurício Genofre, corregedor-geral da Polícia Civil de São Paulo. Até agora, no entanto, não há nada do gênero em andamento. Bingo "Vem pra cá curtir alegria." A faixa que anunciava a festa do dia 16 ainda se encontrava diante da Comunidade São José na quarta-feira. A modesta igreja -uma das raras católicas em Cidade Júlia- passa por reformas. A quantia arrecadada com a quermesse iria ajudar a concluir as obras. Os alto-falantes tocavam Luiz Gonzaga e a quadrilha caipira se apresentava no momento em que os tiros pipocaram. Moradores da favela contam que os policiais -"uns dez ou 15"- chegaram de repente. Ocupavam dois carros de passeio. Localizaram Serginho na multidão e correram atrás dele. Enquanto o perseguiam, atiravam. O rapaz sacou a arma e reagiu. Quando tombou ferido, os agentes continuaram disparando. "Mandavam a gente desaparecer. "Some, some. A festa terminou", gritavam. Demorei a entender que aquela barulheira não era das bombinhas", descreve Maria Nunes, 37. Seu filho, de 8 anos, teve a coxa esquerda atravessada por uma bala. Outra criança tomou um tiro de raspão na boca. Os mesmos moradores denunciam que, após a morte de Celso Daniel, os abusos policiais em Cidade Júlia recrudesceram. Há relatos de agressões contra menores, revistas humilhantes, discriminações raciais e arrombamentos de casas. "Prefiro os presos do Cadeião de Pinheiros à corja da lei", vocifera um adolescente, cujo irmão se feriu na quermesse. Tal estado de ânimo quem sabe explique o bingo que se organizava por lá quatro dias atrás. Com cartelas de R$ 0,50 e R$ 1, o jogo oferecia duas cestas básicas como prêmio. E buscava dinheiro para complementar o tratamento de Serginho, internado no Hospital Penitenciário. Texto Anterior: Outro lado: Polícia diz que só revidou Próximo Texto: Outro lado: Secretaria atribui crescimento à barbárie do crime Índice |
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