São Paulo, segunda-feira, 24 de junho de 2002

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SEGURANÇA

Em busca de sequestrador em favela de SP, ação policial deixou feridos dez civis que estavam em uma quermesse

"Prefiro presos à corja da lei", diz morador

Antônio Gaudério/Folha Imagem
Criança ferida na ação policial que resultou na prisão de Serginho, integrante do grupo que sequestrou Celso Daniel


ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL

"Nasci de novo." Nunca um clichê soou tão preciso quanto na boca daquele pedreiro de 28 anos. Quarta-feira passada, enquanto trabalhava, ele recordava, incrédulo, como escapou de engrossar a já extensa lista dos civis mortos durante operações policiais.
"Uma bala perdida me atingiu logo abaixo do umbigo." O forte impacto derrubou-o. À maneira de um milagre, porém, o tiro errático acertou justamente o zíper da calça jeans que estava usando. Bateu bem ali, no fecho, e desviou, sem causar ferimentos graves.
Para provar, o rapaz exibia não só o zíper danificado, mas também a barriga levemente chamuscada e com um pequeno inchaço. "Acredita agora?"
A "ressurreição" se deu na madrugada do último dia 16, um domingo. O pedreiro, que não quer se identificar, participava de uma quermesse em Cidade Júlia, bairro periférico da zona sul paulistana. Era pouco mais de 0h quando o bangue-bangue começou.
De um lado, agentes à paisana do DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa). Do lado oposto, Mauro Sérgio Santos de Souza, 20, o Serginho, acusado de integrar o grupo que, há cinco meses, sequestrou e matou o prefeito Celso Daniel, de Santo André. Em meio aos tiros, centenas de moradores locais, que se divertiam na festa de rua.
O tiroteio acabou levando à prisão de Serginho, baleado perto da coluna vertebral. Resultou, contudo, em outros dez feridos. Apenas um é da polícia. Os nove restantes (quatro crianças, dois adolescentes, o pedreiro e mais dois adultos) não tinham nenhum envolvimento com o caso.
"Entramos de gaiato no navio e podíamos estar liquidados", resume o estudante de 15 anos que recebeu um disparo no tornozelo direito. O projétil lhe rasgou a perna e trincou um osso. Enfaixado, o garoto deverá permanecer dois meses sem pisar no chão.
Em Cidade Júlia -vasta favela fronteiriça à do Jardim Pantanal, um dos lugares que serviram de cativeiro para Celso Daniel-, a população se mostra inconformada. Julga que a polícia agiu irresponsavelmente. Iniciou o tiroteio sem se preocupar com os que circulavam pela quermesse.
"Você acha que algo semelhante aconteceria num bairro de rico?", pergunta uma jovem que assistiu à confusão. "Os policiais não tinham o direito de fazer a patifaria que fizeram. Não respeitaram grávidas, idosos, moleques, ninguém", protesta outra mulher.
Entre vítimas e testemunhas, difícil garimpar quem aceite dizer o nome. Quase todos temem represálias. "Aqui, o mocinho atua como bandido. O silêncio é nosso melhor companheiro", argumenta o dono de um boteco.
O DHPP refuta as críticas. Afirma que seus agentes só atiraram porque Serginho disparou primeiro -ele estaria com um revólver calibre 38 (leia texto nesta página). "O episódio parece sério e exige a abertura de uma sindicância que apure a legitimidade da operação", avalia Roberto Maurício Genofre, corregedor-geral da Polícia Civil de São Paulo. Até agora, no entanto, não há nada do gênero em andamento.

Bingo
"Vem pra cá curtir alegria." A faixa que anunciava a festa do dia 16 ainda se encontrava diante da Comunidade São José na quarta-feira. A modesta igreja -uma das raras católicas em Cidade Júlia- passa por reformas. A quantia arrecadada com a quermesse iria ajudar a concluir as obras.
Os alto-falantes tocavam Luiz Gonzaga e a quadrilha caipira se apresentava no momento em que os tiros pipocaram. Moradores da favela contam que os policiais -"uns dez ou 15"- chegaram de repente. Ocupavam dois carros de passeio. Localizaram Serginho na multidão e correram atrás dele. Enquanto o perseguiam, atiravam. O rapaz sacou a arma e reagiu. Quando tombou ferido, os agentes continuaram disparando.
"Mandavam a gente desaparecer. "Some, some. A festa terminou", gritavam. Demorei a entender que aquela barulheira não era das bombinhas", descreve Maria Nunes, 37. Seu filho, de 8 anos, teve a coxa esquerda atravessada por uma bala. Outra criança tomou um tiro de raspão na boca.
Os mesmos moradores denunciam que, após a morte de Celso Daniel, os abusos policiais em Cidade Júlia recrudesceram. Há relatos de agressões contra menores, revistas humilhantes, discriminações raciais e arrombamentos de casas. "Prefiro os presos do Cadeião de Pinheiros à corja da lei", vocifera um adolescente, cujo irmão se feriu na quermesse.
Tal estado de ânimo quem sabe explique o bingo que se organizava por lá quatro dias atrás. Com cartelas de R$ 0,50 e R$ 1, o jogo oferecia duas cestas básicas como prêmio. E buscava dinheiro para complementar o tratamento de Serginho, internado no Hospital Penitenciário.


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