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URBANIDADE
Navegar é preciso
NERVOS DA CIDADE Vila Olímpia. Em horário comercial, formiguejante de gravatas e saltos finos. No fim de semana, deserto altaneiro, espectral, inexpiável. Os prédios, grandes demais para ruas tão estreitas como peças de xadrez no tabuleiro errado, espelham-se um no outro. Espelham os céus também, mas os céus nunca foram humanos e a vida, então, parece aqui inteiramente provisória.
(VINCENZO SCARPELLINI)
GILBERTO DIMENSTEIN
COLUNISTA DA FOLHA
Quando era adolescente,
o surfista Alessandro
Nautile, hoje com 35 anos, tinha dois sonhos: um, profissional,
era formar-se dentista; o outro,
mais excitante, recreativo, era
ter um veleiro e com ele viajar,
parando de praia em praia, longe de qualquer agitação urbana.
Realizou os dois sonhos e quer
agora realizar mais um: viver
dentro do barco sem deixar de
ser dentista.
Desde o ano passado, ele está
conseguindo essa proeza, pelo
menos nos fins de semana e nos
feriados, quando junta o prazer
do iatismo com a satisfação profissional.
Para fugir do estresse paulistano, Alessandro viaja regularmente para Paraty e navega, a
bordo de seu veleiro, pelas águas
do litoral norte de São Paulo.
Naquele trecho, como muitos jovens de sua geração, aprendeu a
descobrir o encanto marítimo
-especialmente quando muitas
das praias, antes da construção
da Rio-Santos, eram quase inacessíveis, paraíso dos alternativos. Fez do barco sua casa de
praia e transformou-a numa espécie de ambulatório dentário.
O adolescente que se formou
dentista nunca perdeu o encanto
pela paisagem natural, mas passou a ficar incomodado com a
paisagem bucal que via nas
praias. "É lastimável ver os dentes apodrecidos das crianças que
moram nas aldeias de pescadores." Decidiu, então, levar trabalho para a praia, sem imaginar
que acabaria descobrindo um
novo jeito de ser dentista -ou
de praticar o iatismo.
Ao se aproximar de algumas
aldeias, Alessandro logo percebe
as crianças, junto das mães, que
vêm correndo à procura do tratamento gratuito. Ali mesmo, na
areia, em cima de um banco, ele
cuida das cáries e restaura os
dentes estragados. "Uso materiais baratos, sem sofisticação."
As crianças saem dali, literalmente, com um novo sorriso, o
que lhe dá muito mais emoção
do que trabalhar na cidade.
O que era, porém, uma experiência de fim de semana, em
que ele unia o prazer de tratar
dos dentes ao de velejar, ganhou
ares de projeto de vida. Quer ficar mais tempo próximo da natureza sem, porém, sentir-se inútil. Imagina-se mais útil cuidando daquelas crianças das aldeias
de pescadores do que em seu asséptico consultório.
Criou o projeto batizado de
Sorriso Marinho e está saindo à
cata de patrocínio -o que lhe
permitiria fazer uma inversão.
Só viria para São Paulo nos fins
de semana e nos feriados e, assim, realizaria um dos sonhos
dourados de muitos paulistanos
angustiados com o trânsito, com
a poluição e com a violência,
mas encantados com as possibilidades culturais da cidade.
E-mail - gdimen@uol.com.br
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