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São Paulo, quarta-feira, 24 de setembro de 2003

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URBANIDADE

Navegar é preciso

NERVOS DA CIDADE Vila Olímpia. Em horário comercial, formiguejante de gravatas e saltos finos. No fim de semana, deserto altaneiro, espectral, inexpiável. Os prédios, grandes demais para ruas tão estreitas como peças de xadrez no tabuleiro errado, espelham-se um no outro. Espelham os céus também, mas os céus nunca foram humanos e a vida, então, parece aqui inteiramente provisória. (VINCENZO SCARPELLINI)

GILBERTO DIMENSTEIN
COLUNISTA DA FOLHA

Quando era adolescente, o surfista Alessandro Nautile, hoje com 35 anos, tinha dois sonhos: um, profissional, era formar-se dentista; o outro, mais excitante, recreativo, era ter um veleiro e com ele viajar, parando de praia em praia, longe de qualquer agitação urbana. Realizou os dois sonhos e quer agora realizar mais um: viver dentro do barco sem deixar de ser dentista.
Desde o ano passado, ele está conseguindo essa proeza, pelo menos nos fins de semana e nos feriados, quando junta o prazer do iatismo com a satisfação profissional.
Para fugir do estresse paulistano, Alessandro viaja regularmente para Paraty e navega, a bordo de seu veleiro, pelas águas do litoral norte de São Paulo. Naquele trecho, como muitos jovens de sua geração, aprendeu a descobrir o encanto marítimo -especialmente quando muitas das praias, antes da construção da Rio-Santos, eram quase inacessíveis, paraíso dos alternativos. Fez do barco sua casa de praia e transformou-a numa espécie de ambulatório dentário. O adolescente que se formou dentista nunca perdeu o encanto pela paisagem natural, mas passou a ficar incomodado com a paisagem bucal que via nas praias. "É lastimável ver os dentes apodrecidos das crianças que moram nas aldeias de pescadores." Decidiu, então, levar trabalho para a praia, sem imaginar que acabaria descobrindo um novo jeito de ser dentista -ou de praticar o iatismo.
Ao se aproximar de algumas aldeias, Alessandro logo percebe as crianças, junto das mães, que vêm correndo à procura do tratamento gratuito. Ali mesmo, na areia, em cima de um banco, ele cuida das cáries e restaura os dentes estragados. "Uso materiais baratos, sem sofisticação." As crianças saem dali, literalmente, com um novo sorriso, o que lhe dá muito mais emoção do que trabalhar na cidade.
O que era, porém, uma experiência de fim de semana, em que ele unia o prazer de tratar dos dentes ao de velejar, ganhou ares de projeto de vida. Quer ficar mais tempo próximo da natureza sem, porém, sentir-se inútil. Imagina-se mais útil cuidando daquelas crianças das aldeias de pescadores do que em seu asséptico consultório.
Criou o projeto batizado de Sorriso Marinho e está saindo à cata de patrocínio -o que lhe permitiria fazer uma inversão. Só viria para São Paulo nos fins de semana e nos feriados e, assim, realizaria um dos sonhos dourados de muitos paulistanos angustiados com o trânsito, com a poluição e com a violência, mas encantados com as possibilidades culturais da cidade.

E-mail - gdimen@uol.com.br


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