São Paulo, terça, 24 de novembro de 1998

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Consulte sempre um advogado e um psiquiatra

MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas

Ou não consulte. Vá sozinho. Tem advogado que cobra R$ 130 pela primeira consulta, ou seja: só para olhar para a sua cara e ouvir sua história desinteressante.
O ideal seria ir acompanhado à delegacia fazer o BO (boletim de ocorrência), mas o advogado não será o dos filmes de Hollywood.
A delegacia tem seus guichês de cimento pintados com tinta a óleo e bancos também de cimento onde se senta uma fila de infelizes à espera de atendimento. O único escrivão gordo e flácido se arrasta diante da tela de um computador. A fila de dez infelizes levará horas de aflição e espera para se desfazer. Um único escrivão na 77ª delegacia de polícia de São Paulo, bairro de Santa Cecília: uma frieza de cimento, um descaso, um desdém estampado na cara de quem atende.
Não estão nem aí se lhe roubaram, se bateram no seu carro, se assaltaram sua casa. Pouco se importam se sua causa for uma queixa de cidadão contra a extorsão cotidiana: você roubado no IPTU, na prestação da casa, no seguro saúde, nas taxas dos bancos, nos impostos do governo.
Já na 16ª delegacia, na Vila Clementino, fila para tirar a carteira de identidade (ou a 2ª via), que demora mais de um mês para ficar pronta. Fila, cavalice, funcionária emburrada. Tive uma briga lá: que não era justo a pessoa que vai apenas retirar a carteira ficar na mesma fila dos que vão fazer uma. Burocracia burra. Funcionária espantou-se.
Querem que você tenha medo da polícia, fique acuado na delegacia, aceite as regras e o desrespeito -imagine que, na 16ª, depois da brutalidade com que tiram as impressões digitais da pessoa, mandam-na lavar as mãos num tanque de lavar roupa, com sabão em pedra e sem toalha!
Ah, os advogados dos filmes de Hollywood. Aqueles que se interessam pela causa pequena do cidadão necessitado, que vão lá, batalham, defendem o infeliz. Mas aqui... Parece que a crise na Justiça não é bem na Justiça: é no próprio direito brasileiro, dizem. No amontoado de papel inútil em que se transforma um processo judiciário, nos vergonhosos longos anos de tramitação e recursos.
Você continuará enlouquecendo num banco de delegacia: a cara do único escrivão balofo se transforma em tromba de elefante, em fuça de hipopótamo. Procure imediatamente um psiquiatra.
Ou não procure (que eles cobram, em média, R$ 150 por sessão de 40 ou 50 minutos). Faça como Toninho, um louco que sai pelas ruas silenciosas do bairro de manhã cedo, o sol se acomodando ainda morno entre as nuvens. Toninho vem gritando lá da esquina:
-Eu sou o Toninhô...! Eu só preciso de carinhô...!
À medida que ele se aproxima do prédio, a voz se aclara:
-Bom dia! Eu sou o Toninhô! Eu só preciso de carinhô!
Talvez algum psiquiatra tenha dito a ele: "Não, Toninho. Você não é louco não. Você só precisa de carinho." E ele endoidou de vez. Ele se iludiu.
O segredo está em não se iludir, em não se esquecer de que você está sozinho num mundo que está todo contra você.

E-mailmfelinto@uol.com.br



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