São Paulo, segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

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MOACYR SCLIAR

Mensagem de Natal


Pelo cartão, quisera associar o Natal a uma mensagem de amor; uma nova vida, era o que estava prometendo

 Um cartão do Natal com um desenho colorido de Papai Noel e uma menina, postado em 1914, acaba de chegar a seu destino na cidade americana de Oberlin, no Estado de Kansas, depois de ficar extraviado durante 93 anos.
O cartão, datado de 23 de dezembro de 1914, tinha sido enviado a Ethel Martin, de Oberlin. Ethel Martin nunca chegou a ler a mensagem de Natal. Ela morreu antes de receber o cartão. Folha Online, 17 de dezembro de 2007

PARA ELE, O FIM DO ANO era sempre uma época dura, difícil de suportar. Sofria daquele tipo de tristeza mórbida que acomete algumas pessoas nos festejos de Natal e de Ano Novo.
No seu caso havia uma razão óbvia para isso: aos 70 anos, solteirão, sem parentes, sem amigos, não tinha com quem celebrar, ninguém o convidava para festa alguma. O jeito era tomar um porre, e era o que fazia, mas o resultado era melancólico: além da solidão, tinha de suportar a ressaca.
No passado, convivera muito tempo com a mãe. Filho único, sentia-se obrigado a cuidar da velhinha que cedo enviuvara. Não se tratava de tarefa fácil: como ele, a mãe era uma mulher amargurada.
Contra a sua vontade, tinha casado, em 31 de dezembro de 1914 (o ano em que começou a Grande Guerra, como ela fazia questão de lembrar) com um homem de quem não gostava, mas que pais e familiares achavam um bom partido. Resultado desse matrimônio: um filho e longos anos de sofrimento e frustração.
O filho tinha de ouvir suas constantes e ressentidas queixas. Coisa que suportava estoicamente; não deixou, contudo, de sentir certo alívio quando de seu falecimento, em 1984. Este alívio resultou em culpa, uma culpa que retornava a cada Natal. Porque a mãe falecera exatamente na noite de Natal.
Na véspera, no hospital, ela lhe fizera uma confissão surpreendente: muito jovem, apaixonara-se por um primo, que acabou se transformando no grande amor de sua vida. Mas a família do primo mudara-se, e ela nunca mais tivera notícias dele.
Nunca recebera uma carta, uma mensagem, nada. Nem ao menos um cartão de Natal.
No dia 24 pela manhã ele encontrou um envelope na carta do correio. Como em geral não recebia correspondência alguma, foi com alguma estranheza abriu o envelope. Era um cartão de Natal, e tinha a falecida mãe como destinatária. Um velhíssimo cartão, uma coisa muito antiga, amarelada pelo tempo. De um lado, um desenho do Papai Noel sorrindo para uma menina. Do outro lado, a data: 23 de dezembro de 1914. E uma única frase: "Eu te amo." A assinatura era ilegível, mas ele sabia quem era o remetente: o primo, claro.
O primo por quem a mãe se apaixonara, e que, por meio daquele cartão, quisera associar o Natal a uma mensagem de amor. Uma nova vida, era o que estava prometendo. Esta mensagem e esta promessa jamais tinham chegado a seu destino. Mas de algum modo o recado chegara a ele. Por quê? Que secreto desígnio haveria atrás daquilo?
Cartão na mão, aproximou-se da janela. Ali, parada sob o poste de iluminação, estava uma mulher já madura, modestamente vestida. Hesitou um instante e depois precipitou-se para fora. Tinha uma mensagem a entregar. Uma mensagem que poderia transformar sua vida, e que era, por isso, um verdadeiro presente de Natal.


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha


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