São Paulo, segunda-feira, 25 de outubro de 2004

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MOACYR SCLIAR

O sono do seqüestrador (ah, sim, e o seu sonho também)

Um cochilo pôs fim a 12 horas de um seqüestro numa igreja evangélica do centro de São Bernardo (ABC paulista). Assim que um dos seqüestradores adormeceu sobre um sofá com o revólver na mão, os pastores evangélicos Júlio José da Silva Junior e Rogério Pereira Neves aproveitaram para fugir. O cochilo não foi acidental. O acusado autorizou os reféns a receber esfihas para comer e aceitou da polícia um pouco de café, que continha sonífero. Cotidiano, 22.out.2004

Desde garoto sofria de um sentimento de inferioridade. Sentimento de inferioridade com causas reais: de família pobre, pouco instruído, não tivera muitas oportunidades. Tornara-se assaltante; com um revólver na mão era outro, seguro de si, importante, ameaçador. Com um revólver na mão não podia ser ignorado por ninguém. A verdade, contudo, é que como assaltante não se revelara grande coisa: uns trocados aqui, uns passes de ônibus ali -nada espetacular, nada que desse manchetes de jornais. Isto o deixava frustrado e talvez explicasse a insônia da qual também sofria. Passava as noites acordado, planejando assaltos mirabolantes (a um grande banco, a um prédio de milionários, a um museu até), sabendo que nunca se transformariam em realidade. No dia seguinte, quando tinha de fazer assaltos de verdade, mal conseguia abrir os olhos. O companheiro reclamava: que é isso, cara, um dia você vai adormecer com o revólver na mão.
E foi o que aconteceu. Fugindo de um assalto, entraram numa igreja evangélica, tomaram os pastores como reféns. A polícia cercou o local; a chance de escaparem era quase nenhuma, de modo que o companheiro resolveu se entregar.
Ele, não. Ele ficaria ali, de revólver na mão. Pressentia que aquilo era algo diferente, que projetaria o seu nome. Mais; estava seguro de que teria êxito na negociação, de que sairia dali livre e talvez até com uma boa grana. O otimismo se transformou em condescendência; permitiu que os pastores recebessem alimento e até aceitou um café oferecido pela polícia.
Pouco depois veio aquele sono invencível. Que o deixou surpreso: ele, que sempre sofrera de insônia, agora estava com sono? Logo naquele momento? O que poderia estar acontecendo? Antes que encontrasse resposta para a pergunta, adormeceu.
E sonhou. Um sonho muito interessante. Sonhou que era delegado de polícia e estava comandando o cerco a um seqüestrador refugiado numa igreja. Seus homens estavam nervosos: como dominar o bandido, que estava armado? Muito simples, disse ele.
Dêem ao homem sonífero misturado no café. Ele nunca vai desconfiar. Afinal, todo o mundo sabe que café dá insônia.
Idéia genial e que, de alguma forma, o consolou quando foi preso. Ao menos uma vez tinha tido uma idéia genial. E ao menos uma vez tinha dormido a sono solto.


Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha de São Paulo.


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