São Paulo, terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

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CECILIA GIANNETTI
Máquina do tempo

Doenças, enchentes e desabamentos iguaizinhos aos que ocorriam na primeira metade do século passado

FEVEREIRO DE DOIS MIL E OITO: repriso aqui o cabeçalho da página, mês e ano em caixa alta e por extenso, para destacar que a crônica desta terça-feira não foi pinçada de uma antologia de autores mortos no comecinho do século passado, nem do acervo de bibliotecas públicas, tampouco de arquivos de jornais extintos. Não foi escrita à pena de ganso e não fala do trânsito de tílburis, troles e carruagens, não se espanta com a invasão das ruas do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Minas Gerais pelos primeiros Fords-bigode, não comenta a aposentadoria dos charreteiros e dos acendedores de lampiões a gás.
No entanto, estou certa disto, voltamos no tempo: doenças, enchentes e desabamentos iguaizinhos aos que ocorriam na primeira metade do século passado. É possível também visitar episódios mais recentes da nossa história, como os que resultam em mortos e feridos por balas perdidas -novidades, em comparação a velhas endemias transmitidas por mosquitos e às várias cidades que bóiam e se afogam nas chuvas para as quais jamais estiveram preparadas.
H. G. Wells é menos complexo que isto: nossa máquina do tempo é a miséria -real, palpável e, tudo leva a crer, perpétua e incorrigível. Uma espécie de atraso que supera a melhor ficção científica quando, por exemplo, torna-se pública outra seqüência de roubos aqui, outros ali e acolá, que faz a roda dos infortúnios continuar girando. O eterno retorno ao barro sujo do tempo das carroças, aos bairros sem saneamento básico, coisas consideradas corriqueiras e que só aporrinham a mente dos filósofos e rasgam a barriga de alguns desgraçados. No mais, não surtem efeito, acho.
Provavelmente exagero. "Se as coisas estivessem assim tão ruins, eu não estaria vivo, segurando este jornal!". Verdade. Nem tudo é só estagnação. O Rio, ao menos, não ficou totalmente parado. No quesito bangue-bangue, ainda vivemos como nos faroestes de películas esquecidas, porém, com um significativo diferencial.
Em 2007, o governador Sérgio Cabral (PMDB) trouxe uma inovação que sacudiu a pasmaceira dos índices de violência do Estado e os jogou anos-luz à frente do que se poderia esperar de uma área que, segundo as autoridades, não está vivendo uma guerra. O número de mortos pela polícia do Rio atingiu a marca de 1.260 em confronto, o maior já registrado desde 1998, quando foi dada a largada à contabilização oficial de autos de resistência eufemismo do poder pelo qual são identificadas as vítimas de conflitos com policiais. E trata-se apenas de um número parcial, já que foram excluídas nos últimos quatro meses de levantamento delegacias não-informatizadas.
É mais-do-mesmo, literalmente: um número de cadáveres superior graças à política de confronto em que aposta o governo. Circulamos em terra de ninguém -não pertence a quem vota e elege, não se torna de quem é eleito. Estes, com todos os privilégios que vêm com o poder e todos aqueles que tomam para si sem que a eles tenham direito,
Sem querer fazer pouco caso das calamidades alheias transmitidas pela CNN, a farta distribuição de acontecimentos sórdidos mundo afora não ameniza o jeito bruto com que 2008 finalmente começa por aqui. Passado o Carnaval, vagarosamente, tentamos colocar em movimento a engrenagem da rotina. Nada além dos dígitos do "bodycount" parece se mover. Eu espero que seja apenas uma (má) impressão minha.


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