|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CECILIA GIANNETTI
Máquina do tempo
Doenças, enchentes e desabamentos iguaizinhos aos que ocorriam na primeira metade do século passado
FEVEREIRO DE DOIS MIL E OITO:
repriso aqui o cabeçalho da
página, mês e ano em caixa alta e por extenso, para destacar que a
crônica desta terça-feira não foi pinçada de uma antologia de autores
mortos no comecinho do século
passado, nem do acervo de bibliotecas públicas, tampouco de arquivos
de jornais extintos. Não foi escrita à
pena de ganso e não fala do trânsito
de tílburis, troles e carruagens, não
se espanta com a invasão das ruas do
Rio de Janeiro, de São Paulo, de Minas Gerais pelos primeiros Fords-bigode, não comenta a aposentadoria dos charreteiros e dos acendedores de lampiões a gás.
No entanto, estou certa disto, voltamos no tempo: doenças, enchentes e desabamentos iguaizinhos aos
que ocorriam na primeira metade
do século passado. É possível também visitar episódios mais recentes
da nossa história, como os que resultam em mortos e feridos por balas
perdidas -novidades, em comparação a velhas endemias transmitidas
por mosquitos e às várias cidades
que bóiam e se afogam nas chuvas
para as quais jamais estiveram preparadas.
H. G. Wells é menos complexo que
isto: nossa máquina do tempo é a
miséria -real, palpável e, tudo leva a
crer, perpétua e incorrigível. Uma
espécie de atraso que supera a melhor ficção científica quando, por
exemplo, torna-se pública outra seqüência de roubos aqui, outros ali e
acolá, que faz a roda dos infortúnios
continuar girando. O eterno retorno
ao barro sujo do tempo das carroças,
aos bairros sem saneamento básico,
coisas consideradas corriqueiras e
que só aporrinham a mente dos filósofos e rasgam a barriga de alguns
desgraçados. No mais, não surtem
efeito, acho.
Provavelmente exagero. "Se as
coisas estivessem assim tão ruins, eu
não estaria vivo, segurando este jornal!". Verdade. Nem tudo é só estagnação. O Rio, ao menos, não ficou totalmente parado. No quesito bangue-bangue, ainda vivemos como
nos faroestes de películas esquecidas, porém, com um significativo diferencial.
Em 2007, o governador Sérgio Cabral (PMDB) trouxe uma inovação
que sacudiu a pasmaceira dos índices de violência do Estado e os jogou
anos-luz à frente do que se poderia
esperar de uma área que, segundo as
autoridades, não está vivendo uma
guerra. O número de mortos pela
polícia do Rio atingiu a marca de
1.260 em confronto, o maior já registrado desde 1998, quando foi dada a
largada à contabilização oficial de
autos de resistência eufemismo do
poder pelo qual são identificadas as
vítimas de conflitos com policiais. E
trata-se apenas de um número parcial, já que foram excluídas nos últimos quatro meses de levantamento
delegacias não-informatizadas.
É mais-do-mesmo, literalmente:
um número de cadáveres superior
graças à política de confronto em
que aposta o governo. Circulamos
em terra de ninguém -não pertence
a quem vota e elege, não se torna de
quem é eleito. Estes, com todos os
privilégios que vêm com o poder e
todos aqueles que tomam para si
sem que a eles tenham direito,
Sem querer fazer pouco caso das
calamidades alheias transmitidas
pela CNN, a farta distribuição de
acontecimentos sórdidos mundo
afora não ameniza o jeito bruto com
que 2008 finalmente começa por
aqui. Passado o Carnaval, vagarosamente, tentamos colocar em movimento a engrenagem da rotina. Nada além dos dígitos do "bodycount"
parece se mover. Eu espero que seja
apenas uma (má) impressão minha.
Texto Anterior: Entrevista: Tive que acalmá-lo, diz motorista Próximo Texto: Consumo: Leitor reclama do serviço de entrega da rede McDonald's Índice
|