São Paulo, segunda-feira, 26 de maio de 2008

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MOACYR SCLIAR

O campeonato do amor

O que ela fez foi transformar o dormitório do apartamento onde mora numa espécie de miniestádio de futebol

A chegada de dois grandes eventos esportivos do ano -a Eurocopa em junho e as Olimpíadas em agosto- pode ser motivo de preocupação entre namoradas de torcedores na Europa. Uma pesquisa indica que seis em cada dez europeus preferem ver um jogo de futebol a ter relações sexuais. A maioria (63%) disse que planeja seu tempo livre em função do calendário de competições esportivas. Só marca programas se não tiver que perder a transmissão de alguma partida. O time ou seleção também conta como quesito na hora de encontrar uma namorada.
Quatro em cada dez entrevistados preferem que a parceira torça pela mesma equipe. Folha Online, 19 de maio

FOI AMOR À PRIMEIRA vista -e desde o começo parecia que o namoro terminaria num feliz casamento. Os dois estavam apaixonados, os dois se davam muito bem; na cama tudo corria às mil maravilhas. Mas, quando começou o campeonato de futebol, ela se deu conta de que alguma coisa estava errada.
Claro, sabia que ele, como muitos, gostava do esporte, que freqüentava o estádio sempre que podia, que era fanático por seu time; mas isso nada tinha de anormal, ao contrário, era o que ela esperaria de qualquer homem. E aí aconteceu a primeira e importante partida. O time dele estava jogando -e, normalmente, ele iria ao estádio; por uma dessas perturbadoras coincidências, ela estava de aniversário e pediu que os dois jantassem juntos, no apartamento dela, para comemorar à luz de velas e com champanhe. Ele vacilou um pouco, mas acabou concordando: afinal, era um namorado gentil e apaixonado. Jantaram, trocaram brindes e, aí, num arroubo de paixão, ela se jogou nos braços dele. Estavam no meio de uma fogosa relação quando de repente lá fora soaram gritos de "gol!, gol!", seguidos do estrondo de foguetes. Ele não hesitou: saltou da cama e, nu como estava, foi correndo ligar a TV. Era um gol do time adversário, e ele não voltou mais para o leito: ficou ali, olhando a partida, que terminou com aquele vergonhoso 1 a 0. Tão aborrecido o rapaz ficou que, sem uma palavra, deitou-se e adormeceu.
A partir daí sucederam-se os incidentes, as brigas. Ela queria ir ao cinema, ele queria ir ao jogo. Ela queria jantar fora, ele tinha um encontro com o pessoal da torcida organizada. As amigas lhe diziam: termina com esse cara, você vai acabar se aborrecendo. E ela chegou mesmo a pensar nisso, em terminar de vez com ele. A verdade, porém, é que ela também gostava de futebol e até jogava uma pelada de vez em quando.
O que acabou lhe dando uma idéia verdadeiramente salvadora.
O que ela fez foi transformar o dormitório do apartamento em que mora -um apartamento antigo, com um quarto gigantesco- numa espécie de miniestádio de futebol.
Em vez de tapete, grama artificial; em vez de cama, uma trave. Sob a qual ela se posta, devidamente uniformizada. E aí o ritual tem início.
Ele, também uniformizado, avança, tocando a bola. Quando chega em frente à guardiã, ela o agarra. E, os dois, agarrados, rolam pelo macio gramado. E fazem amor até ficarem esgotados.
É o que ela chama de campeonato do amor. Ele garante que está vários pontos à frente. Ela finge concordar.
Sabe que, no final, ela será a grande vencedora. O nenê que engatinhará pelo gramado o provará.


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha


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