São Paulo, segunda-feira, 26 de junho de 2006

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MOACYR SCLIAR

Iguaria


O senhor K. não tem quem o massageie, sente-se cada vez mais fibroso. Eu nunca daria um bom hambúrguer, suspira


O restaurante madrileno Estik lançou um hambúrguer que custa 85 (cerca de R$ 250) e que é feito com uma verdadeira iguaria: a carne de boi de Kobe. Esses animais, que apesar de terem o nome da cidade japonesa são exportados pela Nova Zelândia, são tratados com muita cerveja, música clássica e massagem para ficarem mais tenros e saborosos. Para ter uma idéia, um quilo da carne do boi de Kobe custa na Espanha cerca de 200 (R$ 600), enquanto o de filé mignon custa pouco mais de 30 (R$ 90).
Dinheiro, 21 de junho

UM HAMBÚRGUER que custa 85 destina-se a clientes muito exigentes e só pode ser vendido mediante rigoroso controle de qualidade, sobretudo no que se refere à carne. Tarefa que deve ficar a cargo de um perito especializado. São poucos, estes peritos. O mais famoso deles é um personagem até certo ponto misterioso, que não gosta de ser visto e muito menos de falar sobre o trabalho e que é apenas conhecido como o senhor K. K de Kobe, bem entendido.
O senhor K. sabe tudo acerca da carne do chamado boi de Kobe. E exatamente porque sabe tudo é uma pessoa desconfiada. Não confia nas informações dos produtores; claro, qualquer um deles dirá que o boi em questão foi criado ouvindo música clássica, recebendo doses generosas de cerveja e sendo massageado diariamente por profissionais. Mas será que isso aconteceu mesmo? Será que não se trata de mistificação?
O senhor K. é capaz de responder a essa pergunta dispensando qualquer auxílio de espiões industriais.
Ele usa simplesmente o seu paladar. Provando a carne, o senhor K. pode dizer tudo sobre ela. A começar pela cerveja que o animal tomou. Foi Budweiser? Foi Molson? Foi Lowenbrau? Foi Heineken? Foi Bock? O senhor K. não apenas identifica a marca, mas diz a que temperatura estava a cerveja e se foi bem aceita ou não pelo boi.
Da mesma maneira, o senhor K. sabe avaliar o trabalho da massagista. Quanto tempo durou a sessão de massagem? Que grupos musculares foram alvo desta? A que escola de massagem pertence a profissional? Qual o grau de atenção dedicado ao que está fazendo?
E finalmente a música. Sim, música ambiente sempre deve estar presente no alojamento de um boi de Kobe. Provando a carne, o senhor K. é capaz de dizer que peças musicais o animal ouviu.
Coisa importante; o suave Debussy, por exemplo, torna macio qualquer bife, ao passo que o belicoso Wagner deve ser usado se se pretende uma carne mais firme, mais consistente.
O trabalho do senhor K. é unanimemente reconhecido e ele é extremamente bem pago. Mas isso não o torna feliz. O senhor K. é um solitário. Vive sozinho num enorme apartamento. Claro, ele poderia consolar-se. Com cerveja, por exemplo: a Budweiser, ou a Molson, ou a Lowenbrau, ou a Heineken, ou a Bock. Mas o senhor K. não gosta de cerveja. Também não gosta de música clássica, de Debussy ou de Wagner.
E, pior de tudo, o senhor K. não tem quem o massageie. Por causa de tudo isso, o senhor K. sente-se cada vez mais duro, mais fibroso. Eu nunca daria um bom hambúrguer, suspira, ao deitar-se. Apaga a luz, vira para o lado e adormece, um sono profundo que tem muito em comum com a morte.


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha


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