São Paulo, terça-feira, 26 de outubro de 2010

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JAIRO MARQUES

O milionário


Cadeira "barata" só serve mesmo para compra de votos ou para colocar em ambulatório de empresa

VIVER MONTADO em uma cadeira de rodas implica ter de ir rotineiramente a lojas especializadas para botarem graxa na rebimboca da parafuseta, que começa a fazer barulho, ou mesmo para trocá-la devido ao desgaste da peça. Semana passada, lá fui eu fazer esse programa de mecânico.
Chegando à oficina, a sorridente vendedora veio me fazer uma oferta "imperdível". "Tenho uma promoção excelente. Essa cadeira novinha de titânio, puro creme do milho, importada, está saindo por R$ 6.000. Não quer levar a sua?"
Caso esteja pensando que ela queria me vender uma dúzia de cadeiras, está enganado. O valor "normal" do produto era de 10 mil dinheiros e, agora, com o dólar na bancarrota, virou essa "pechincha".
Uma condução decente, nacional, custa bem mais que um caminhão lotado de melancia. As cadeiras "baratas" só servem mesmo para político safado tentar comprar voto de inocentes e para colocar em ambulatório de empresa. Muletas, próteses, triciclos motorizados, aparelhos auditivos e tudomais.com.br seguem a mesma lógica de preços.
Ter deficiência, ser idoso ou mesmo ser levemente avariado aqui no Brasil teria de dar direito a ganhar na Mega-Sena sozinho, porque tudo nesse mundo paralelo é caro. E é cada um por si para sobreviver com mais conforto e menos limitações.
Quem teve lesão medular ou alguma enfermidade que tenha comprometido as faculdades urinárias pode ter de pagar até para fazer um "xixo", porque vai precisar comprar uns canudinhos -sondas-, para aliviar a bexiga. Isso se o caboclo não quiser enfrentar a fila do SUS e mais aquele trabalhinho burocrático bacana de apresentação de laudos, atestados, tradutor juramentado, testemunhas para, enfim, receber a dádiva do poder público!
Agora, olha que beleza é imaginar uma pessoa prejudicada das vistas dependendo de transporte público. Se aquele que consegue enxergar tudo já vê o diabo quando é espremido nos ônibus, em trens e no metrô, os que não veem um palmo na frente do nariz -e ainda arriscam levar um cachorro consigo- correm o risco de perderem a dignidade quando precisar se deslocar.
O resultado? Bota na conta gastos com grana de táxi -isso naqueles que aceitam levar cego com cachorro- ou com um carro com motorista, afinal ainda não inventaram um piloto realmente automático.
Já desisti de esperar ônibus acessível no ponto faz tempo. Segui o mesmo rumo do jornalista Heródoto Barbeiro e comprei uma Kombi velha. "Você está reclamando de barriga cheia! Tem as isenções de impostos para abatidos da guerra comprarem carros."
Tem mesmo! Mas, depois do desconto, coloque no preço a contratação de um despachante para conseguir juntar a tonelada de papéis inúteis que comprovam que sou deficiente, o valor da adaptação que leva os comandos dos pedais para as mãos -ou outros ajustes-, gasto com estacionamentos, uma vez que na rua não há calçada rebaixada e ninguém respeita vaga reservada.
Acessibilidade não se promove apenas com as fundamentais clínicas de fisioterapia e hospital de reabilitação, como prometem os dois meninos ranhetas e brigões que disputam a Presidência. É também pensar que pessoas com deficiência tem, a fórceps, vida social.

jairo.marques@grupofolha.com.br

@assimcomovc


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