São Paulo, terça-feira, 27 de março de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Maria enfrenta a metrópole feita para quem sabe ler

ANA GABRIELA ROIFFE
DA EQUIPE DE TRAINEES

Como seria perder o ônibus por não saber reconhecer o trajeto? Tomar um remédio sem ler a bula? Precisar de um detergente e sair do supermercado com um desinfetante? Essas situações fazem parte do dia-a-dia de pelo menos 700 mil paulistanos analfabetos, segundo índice do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 91).
Maria Gonçalves Pereira, 59, se mudou para São Paulo há 12 anos e agora é faxineira de uma firma de etiquetas. Começou a trabalhar como empregada doméstica ainda criança, no Ceará, e diz que só tentou estudar uma vez na vida. "Os pais do norte não colocavam os filhos na escola. Mulheres, menos ainda. Eu ainda tentei estudar no Juazeiro, mas não me adaptei." Em dezembro, ela se matriculou em uma escola de alfabetização.
Como achou que não estava aprendendo a ler, decidiu mudar de escola. Desde fevereiro, estuda na 1ª série da turma da noite, no núcleo de alfabetização Cangaíba (zona leste). Segundo uma monitora -como são chamadas as professoras-, falta às aulas mais do que comparece.
O núcleo é parte do programa do Ibeac (Instituto Brasileiro de Estudos e Ação Comunitária), financiado pelo Estado. Funciona em dez salas cedidas pela paróquia Bom Jesus de Cangaíba, da Igreja Católica.
Para a coordenadora do núcleo, Eliana Netto, o maior problema dos analfabetos é a insegurança. "Eles chegam aqui com uma auto-estima muito baixa." Esse é um dos motivos para as evasões. No ano passado foram 45 -dos 225 inscritos.


"Sempre tive que depender dos outros, mas eu ando São Paulo toda. Só me embanano para andar de trem"


Na turma de 35 alunos, Maria é a única que precisa fazer exercícios separadamente para aprender a desenhar as letras. Os outros já tiveram algum contato com a escola e possuem noções básicas de leitura.
Maria diz que pode ir a qualquer lugar da cidade. "Sempre tive que depender dos outros, mas eu ando São Paulo toda. Eu só me embanano para andar de trem, porque eles não anunciam os nomes." Só que nem sequer reconhece os números dos ônibus. Decorou apenas o formato das letras de três itinerários.
Quando vai procurar trabalho novo, precisa estar acompanhada para andar nas ruas. "A gente fica assim, meio alienada", diz.
Além disso, faz compras sempre no mesmo supermercado porque conhece um funcionário que informa o preço dos produtos e evita que ela seja enganada.
Na banca de jornal, Maria olha as fotografias, mas tem vontade de ler as revistas de novela "para saber o que vai acontecer e também a história das artistas".
Ela diz estar acostumada com as situações do dia-a-dia, mas admite que se sentiu "arrasada" quando não conseguiu emprego por não poder anotar um recado ou assinar o nome para receber tíquetes e cesta básica.
Um "ponto forte" dos analfabetos é a matemática intuitiva. Maria mal sabe dar um telefonema, mas não erra trocos ou pagamentos. "Quando usamos objetos concretos, eles percebem que já sabiam muita coisa", diz a coordenadora Eliana.
Pouco a pouco os alunos criam projeções de inclusão no mundo letrado. Maria sonha ser enfermeira voluntária e sente os primeiros resultados das aulas. "A gente tem mais liberdade."


Texto Anterior:
FOLHA TRAINEE/A MANCHA DO ANALFABETISMO
Pesquisadores vinculam analfabetismo e economia

Próximo Texto: Economistas negam relação direta
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.