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RUBEM ALVES
Doutor, será que saio dessa?
Estou remando a canoa rumo à terceira margem. Meu tempo é curto. Não posso gastá-lo com banalidades
DOUTOR, AGORA que estamos
sozinhos quero lhe fazer
uma pergunta: "Será que eu
escapo dessa?" Mas, por favor, não
responda agora; sei o que o senhor
vai dizer. O senhor vai dizer: "Estamos fazendo tudo o que é possível
para que você viva". Mas não me interessa nem o que o senhor está fazendo nem o que todos os médicos
do mundo estão fazendo. Sou uma
pessoa inteligente. Sei a resposta.
Sei que vou morrer.
Morrer é difícil. Há a dor da morte
e a dor das mentiras. Meus parentes,
quando lhes sugiro o tema da morte,
logo o evitam: "Tira essa idéia de
morte da cabeça. Logo você estará
andando de novo..." Tentam enganar-me, por amor. Fico então numa
grande solidão. Não há ninguém
com quem eu possa conversar honestamente.
As visitas vêm, assentam-se, comentam as coisas do cotidiano. Eu
também sorrio delicadamente. É estranho que uma pessoa que está
morrendo tenha a obrigação social
de ser delicada com as visitas. As coisas sobre que falam não me interessam. Eu estou muito longe remando
minha canoa no grande rio, rumo à
terceira margem. Meu tempo é curto. Não posso gastá-lo com banalidades. Os religiosos não me ajudam.
Pretendem saber coisas do outro
mundo. Mas o outro mundo não é
problema para mim. Se Deus existe,
então Deus, que é amor, cuidará dele. Se Deus não existe, então não há
porque me preocupar com o outro
mundo porque nada me faltará se eu
mesmo faltar. Ah! Como seria bom
se as pessoas que me amam me lessem poemas ou ouvissem comigo as
músicas que amo. Para mim a beleza
é o rosto sensível de Deus.
A proximidade da morte trouxe-me lucidez aos meus sentimentos.
Tristeza, é isso que enche a minha
alma. A vida está cheia de tantas coisas boas! Não quero partir...
Doutor, sua missão é lutar contra
a morte. Mas a última batalha é sempre perdida. Sei que nas escolas de
medicina se ensina sobre a morte
como um fenômeno biológico. Mas
o que lhe ensinaram sobre a morte
como uma experiência humana? O
morrer humano não pode ser dito
com a linguagem da ciência. A ciência só lida com generalidades. Mas a
morte de uma pessoa é um evento
único. Minha morte será única no
universo! Uma estrela vai se apagar.
Os remédios que o senhor receita
são inúteis. O senhor sabe disso. São
ilusões para manter acesa a esperança. Mas há um momento da vida
em que é preciso perder a esperança.
Abandonada a esperança, a luta cessa e vem então a paz.
Mas há algo que os seus remédios
podem fazer. Não quero morrer
com dor. Nesse ponto para isso serve a ciência: para me tirar a dor.
Muitos médicos se enchem de escrúpulos por medo de que os sedativos matem o doente. Preferem deixá-lo sofrendo a fim de manter limpa e sem pecado sua própria consciência. Com isso eles transformam
o fim harmonioso da melodia que é a
vida num acorde de gritos desafinados. Somos humanos na medida em
que brilha em nós a esperança da
alegria. Quando a possibilidade de
alegria se vai, é porque a vida humana se foi. Esse é o meu último pedido: quero que minha sonata termine
bonita e em paz...
E agora, doutor, me responda:
"Será que eu saio dessa?". Ficarei feliz se o senhor não me der aquela
resposta boba, mas se assentar ao lado da minha cama e me disser: "Você está com medo de morrer. Eu
também tenho medo de morrer...".
Então conversaremos sobre o medo
que mora em nós dois que vamos
morrer...
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