São Paulo, segunda-feira, 27 de agosto de 2007

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MOACYR SCLIAR

Patroa, empregada


Atriz nata, vivia sem qualquer dificuldade o papel da ricaça que vai as compras. Era absolutamente convincente

 A aventura da falsa socialite que por sete meses se apresentou como a fina Kelly Tranchesi no circuito de luxo de São Paulo terminou com sua prisão e a revelação de que ela é, na verdade, Kelly Samara Carvalho dos Santos, 19, autora de golpes e furtos no Brooklin, na Vila Olímpia, no Itaim Bibi e nos Jardins, como ela própria confessou.
Na loja Vide Bula, na rua da Consolação, armou um circo e tanto, segundo relato de uma vendedora. Ligou antes dizendo ser "empregada da Kelly Tranchesi" e avisando que a "patroa" iria "comprar muito" e que, então, deveria ser muito bem tratada.
De acordo com a funcionária, ela chegou à loja dez minutos depois do telefonema, vestida com roupas de marca, tratando a todos muito mal e com a mesma voz da "empregada". O apreço por grifes é traduzido em suas comunidades do Orkut: Diesel, Scuderia Ferrari, Sttutgart Porsche, Eu Uso Emporio Armani ou Quero uma Ferrari Pink.

Cotidiano, 23 de agosto.

PENSANDO BEM , poderia ter sido uma carreira brilhante, destas que levam a pessoa ao "jet set" internacional. Inteligência e talento não lhe faltavam. Se houvesse um Oscar da vigarice, ela certamente o ganharia (ou, no mínimo, roubaria a estatueta). Mas mesmo os gênios cometem erros. Erros que às vezes se provam fatais. Foi o que descobriu quando dirigiu-se à elegante loja da rua da Consolação para comprar roupas. Coisa que já tinha feito muitas vezes antes, e sem problemas.
Atriz nata, vivia sem qualquer dificuldade o papel da ricaça que vai as compras. Era absolutamente convincente, inclusive quando pagava as compras com cartões de crédito ou cheques roubados.
Nesse dia, porém, ela resolveu acrescentar um "plus" à performance. Antes de ir à loja, telefonou, identificou-se como a empregada de Kelly Tranchesi. Minha patroa vai aí fazer compras, anunciou, e pretende gastar muito, tratem-na bem. Desligou e dirigiu-se até a loja, onde, como esperava, foi recebida com especial deferência -deferência que retribuiu insultando as vendedoras: milionárias não têm a obrigação da gentileza. Notou então que uma delas a fitava com estranheza. Irritada, quis saber a razão disso. A moça hesitou, mas acabou contando: fora ela quem atendera a suposta empregada ao telefone: - E uma coisa me chamou a atenção: ela fala igualzinho à senhora. Até a voz é parecida...
Uma observação que, claro, perturbou-a. Mas, artista da transgressão que era, rapidamente recuperou-se: verdade, disse, a moça falava igual a ela. Coisa que não ocorria por acaso. A empregada tinha tal veneração pela patroa que a imitava em tudo, inclusive na voz. Um exemplo de fidelidade, portanto.
A explicação, contudo, não foi convincente. Já na cadeia deu-se conta do erro, que sem dúvida colaborara para sua prisão. Agora: quem era a culpada por esse erro? A empregada, claro, aquela metida que se atrevia a imitar a própria patroa. Ali mesmo decidiu: assim que eu sair daqui vou despedir aquela mulher. Incompetente comigo não tem vez, bradou, para quem quisesse ouvir, a incompetência está acabando com nosso país.
Um pronunciamento que, tinha certeza, repercutiria por vários anos. Ao menos ali na prisão.


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha


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