São Paulo, segunda-feira, 27 de setembro de 2004

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MOACYR SCLIAR

Voz interior

 Candidato é preso por fraudar exame da OAB. Ele é acusado de tentativa de estelionato por fazer o teste munido de uma suposta escuta eletrônica -aparelho que teria engolido ao ser descoberto. Um exame de raios X constatou a existência de um instrumento metálico de cerca de 2 cm em seu estômago. Na delegacia o acusado afirmou ter pago R$ 15 mil a um grupo que lhe daria as respostas corretas e que pagaria outros R$ 15 mil posteriormente. Cotidiano, 22.set.2004

A inda na prisão ele recebeu um telefonema de alguém cuja voz ele reconheceu e que de imediato o deixou inquieto.
- Estou ligando por causa dos R$ 15 mil.
- Quais R$ 15 mil?
- Não se faça de bobo. Você sabe. São os R$ 15 mil que estão faltando para completar o nosso negócio.
Ele quis argumentar que, a rigor, o negócio não tinha sido concluído, mas o outro não quis saber. Não se atreva a nos passar o calote, advertiu.
- Mesmo porque, segundo o jornal, você está com o receptor na barriga. E nós temos o transmissor. Ficaremos falando pelo transmissor dia e noite, até você pagar.
Aquilo o irritou: façam o que vocês quiserem, gritou, o meu dinheiro vocês não verão. A verdade, porém, é que estava inquieto. Naquela mesma noite acordou com uma sensação estranha: ruídos estavam sendo produzidos em seu ventre. O que seria aquilo? Gases? Ou estaria o grupo cumprindo a ameaça e irradiando impropérios diretamente para suas vísceras, estas sendo, como se sabe, a parte mais primitiva e portanto mais autêntica do corpo?
Não tinha como descobrir. Aplicar o ouvido à própria barriga era coisa que ele não conseguiria fazer, a menos que fosse contorcionista. Um estetoscópio resolveria o problema, mas não dispunha de tal instrumento e, mesmo que conseguisse um, não saberia como usá-lo.
Nas noites seguintes o episódio se repetiu. Angustiado, ele se dá conta da ironia da situação. Assim, pensa, deve funcionar a famosa voz da consciência; mas nunca poderia imaginar que essa voz, graças à tecnologia, pudesse ser imitada pela transgressão. É um castigo que reconhece merecido, mas que gostaria de ver terminado. Neste sentido, há duas coisas em que pode ter esperança: a primeira, de que o receptor, atacado pelos sucos digestivos, pare de funcionar (pouco provável porque o equipamento, segundo o grupo que o fornecera, é da melhor qualidade. A outra possibilidade de solução é simplesmente evacuar o receptor. Neste sentido, deveria confiar na natureza, mas desde que foi detido está sofrendo de uma prisão de ventre rebelde a qualquer laxativo. O que não o surpreende. Sempre soube que não se pode confiar num intestino, ainda mais num intestino preguiçoso e safado.


O escritor Moacyr Scliar Cerca de 5.000 visitam local por domingo escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.

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